sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Gavetas

Sou apegado a um dos discos menos brilhantes dos Paralamas, em que o Herbert canta "Hoje já joguei tanta coisa fora... Cartas e fotografias... A casa fica bem melhor assim...". Ao fazer a separação pós-mudança do que fica ou não fica, encontrei as cartas e fotografias de um amigo muito querido, de quem me afastei, ou nos afastamos mutuamente... Em vez de jogar fora fotografei-as, tentando dar algo de atemporalidade a sonhos e perspectivas que já não existem.
Fiquei pensando no motivo de termos nos correspondido tanto durante o período em que ele estudava fora, mas depois de sua volta a proximidade não nos fez íntimos. Pelo contrário, fomos compartimentalizando nossas conversas, cada um perseguindo separadamente suas conquistas e guardando pequenas mágoas e decepções, que acabaram por se acumular.
Lembro-me de ter lhe enviado uma fita com minha seleção (até hoje) favorita da Nina Simone, e de ele me devolver a letra transcrita, como que adivinhando que precisava do bom ouvido dele para o inglês para dizer: "don't let me be misunderstood'.
É que sem explicar, sem falar, o entendimento não vem, e até me surpreendo por termos continuado amigos por tanto tempo com tanta coisa mal explicada. Ele, sempre aberto, às vezes ofensivo em suas opiniões, mas eu normalmente fechado, exceto pela eventuais tiradas que não me deixavam parecer tão chato... Por muito tempo, acho que ele desconfiava de um relacionamento meu com a namorada, que deixou aqui junto com minha amizade; não desconfiaria se realmente me entendesse, se enxergasse minha retração e minha lealdade. E, se não entendia minha boa intenção, também não percebia que havia mais que amizade em minha proximidade, havia a necessidade de viver por procuração uma vida que parecia muito fora de meu alcance... Talvez por isso nos afastamos quando eu comecei a viver minha própria vida, profissional e amorosa, e a ter meus próprios sucessos. Culpei-o por não estar próximo quando precisei dele, mas também não estive por perto quando ele precisou. Hoje culpo-me por julgá-lo pelo que dizia, em vez de aceitá-lo pelo que é.
E assim cartas, que já ninguém mais escreve, me lembram de uma parte da minha vida que será sempre um tesouro, encolhendo a cada ano, soterrado pelo restante dos anos vividos, mas por isso mesmo mais precioso.


sábado, 18 de setembro de 2010

Cena: recreio

— Ih, você viu o Branco, se ferrou!
— Putz, é mesmo, apanhou da velha!
— A velha é f..., bate mesmo! Num é à toa que ela deixa aquele Lapizinho de Itu pendurado na lousa. Outro dia o Gu e o Bola tavam conversando e ela foi pra cima deles com aquele cacete!
— E ela bateu?
— Não, parou antes, só gritou com eles, mas eles ficaram se borrando. Acho que apanhar, mesmo, só o Branco.
— Mas o que ele estava fazendo? Ele nunca faz nada!
— Num sei, só vi quando ela veio batendo o pé e virou um tapão na cara dele. Ele ficou todo vermelho, do tapa e de vergonha. Ô Nico, vem cá! O que teu primo tava fazendo que a D. Celina bateu nele?
— Você não lembra que a gente estava sorteando os nomes para o amigo secreto? Então, o Roberto Magaldi olhou para trás e viu o nome dele no papelzinho. Aí ele falou alto "Aí, Branco, você me tirou!"
— Putz, que azar! Se fosse eu, virava um soco no Betão pra ele deixar de ser besta.
— Ô, se virava, e ele ia te pegar na saída e te matar. Ele só releva o Branco, num sei por quê. Seu primo tá namorando o Betão, hein, Nico.
— Vai se ferrar, Paulo.
— Sério, o Betão sempre pega no pé de todo mundo, mas fica todo protegendo o Branco.
— No começo do ano ele ficava provocando, mas o Branco nem respondia. Quando o Roberto veio pegar ele na saída o Branco parece que nem entendia o que estava acontecendo, ficou só olhando pra cara dele.
— É mesmo, o Betão falou que só num quebrava a cara dele porque tinha dó, mas depois ficou protegendo o Branco. Pô, o Branco é maior que eu! Só apanha mesmo é da Celina.
— Ela também não deu um chute nele no começo do ano?
— Num foi chute, ela deu um trompaço nele, que ele foi bater na parede e caiu sentado na cadeira! Quem mandou ele levantar?
— Ah, é, foi quando a gente estava dobrando cravos de crepom para o dia das mães. Ela só deixava as meninas abrirem os cravos, a gente ficava só dobrando que nem besta. Eu também queria ver como abria, mas a velha é f..., eu é que não ia levantar para ver, mas o Branco é curió!
— Se ferrou!
— Mas você viu, ele não abriu a boca! Sentou e ficou lá, inteiro vermelho, até passar.
— Pô, se fosse comigo ela ia se ver com o meu pai!
— Úú, ele ia ficar chorando pro papai e pra mamãe.
— Vai se ferrar, babaca.

Foz do Iguaçu

Aceitou a ajuda do carregador para levar as malas porque a escada do hotel era íngreme e as malas estavam pesadas, mas a lerdeza do homem a exasperava.
"O parque fecha às cinco", disse ao companheiro, que subiu com sua própria bagagem.
Estavam cansados da viagem. Dez horas até São Paulo, espera no aeroporto, mais duas horas até Foz, espera pelas malas, táxi até o hotel antiquado. Esperava mais de uma cidade turística, algo como os hotéis do Rio, mas a cidade parecia ter parado em algum momento da década de 80.
"To the falls", soprou ao taxista, que entendeu a mensagem, costurando pela rodovia das Cataratas e deixando-os na entrada do parque. Não percebeu que pagava mais por ser estrangeira, mas não se importaria. Seus conhecimentos de espanhol não ajudavam muito, mas era fácil entender para onde ir e o que fazer; era só seguir os outros turistas. No caminho, foi se lembrando de sua visita a Niagara Falls, de como é impressionante aquela imensidão de água rugindo e fluindo, inesgotável, lembra da sensação de abismo, de vertigem que a queda lhe deu. Não podia vir a Foz e perder a oportunidade de comparar a experiência. Não trouxe câmera; confia em sua memória.
Ela se apressa pela trilha bem-calçada que serpeia por entre as árvores, mas um bando de quatis, atravessando o caminho, a paralisa. Os outros turistas se deleitam com a visão, mas ela conhece bem os perigos de perturbar animais selvagens. Por sorte, os animais logo desaparecem e ela pode voltar a perseguir o rugido. As cataratas logo se exibem para ela, em dezenas de quedas do outro lado do cânion. Muito bonita, pensa, mas não é tão impressionante. Prossegue no caminho, para chegar mais perto. À medida que caminha, outras visões das cataratas lhe sugerem que ainda não viu nada. Sem perceber, caminha cada vez mais rápido pela trilha, absorvendo a paisagem cada vez mais complexa que se lhe oferece. Quando finalmente chega ao observatório, já não acredita no que vê. Ao seu redor, centenas de cachoeiras se derramam infinitamente em diversos níveis, uma catedral aquática esculpida pelo acaso. Sem se importar com a chuva que as quedas provocam, embrenha-se pelas passarelas e não consegue conter o choro ao se ver no meio de tudo aquilo. Sente-se tão pequena, tão pequena, mas ao mesmo tempo cheia de vida, possuída que está por uma natureza tonitruante e generosa.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Deadline: deadly or dead

Quando garoto eu era um notório procrastinador. "Não procrastines o que é de feitura hodierna" era literalmente "colóquio flácido para acalentar bovinos". E tinha consciência disso, pois durante todo o cursinho tive pregado na parede do armário uma tira do Fernando Gonzalez que dizia algo como "o vestibular está aí... É preciso muita coragem... Para ler gibi com esse clima!"
O tempo passou e me tornei um profissional responsável e respeitável, e meu relacionamento com os prazos se tornou mais 'administrado'. Tudo tem prazo, todos são curtos, e sempre há acidentes de percurso, mas para isso criamos planejamentos, processos, métodos e planos de contingência. Mas se alguém me propõe um algo mais a fazer, em cima de todos esses prazos -- principalmente se é algo criativo, que me desafia pessoalmente --, então a diversão começa.

Poucas coisas são mais estimulantes que a luta de vida ou morte contra um prazo. Você estuda o adversário, simula mentalmente suas estratégias e táticas, prepara-se com todas as informações e rumina-as. Então, como um samurai, começa a circular o inimigo, em uma espiral que vai deixando-o cada vez mais próximo. O prazo sabe que a vantagem está com ele, que só precisa esperar: por congestionamentos, por bloqueios mentais, pela queda da conexão. Mas a disciplina e a experiência vencem o desafio e, de um só golpe, a entrega é feita e o deadline jaz derrotado.
Com a comemoração contida e respeitosa de campeão de snooker, você aceita o convite tácito para a próxima contenda.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Pessoa cruel

"Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!"

"Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz-
Ter por vida a sepultura."

Fernando Pessoa

sábado, 21 de agosto de 2010

Gould e McLaren

Sempre fui apaixonado por música e animação. Esta 'peça' de Norman McLaren, presente no longa 32 curtas sobre Glenn Gould, de François Girard soma as duas coisas de maneira maravilhosa. McLaren ficou conhecido por trabalhar diretamente sobre a película de cinema, sem usar câmeras. Vale a pena assistir ao filme inteiro de Girard e também buscar outras obras de McLaren. Elas são uma 'viagem', bro!

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Mais vale um sorvete na mão

"Deixa eu ir junto", gemia o menino.
"Você não pode ir, a gente logo volta, fica com seu irmão".
"Não, me leva", manhava ele.
O pai começou a calcular o tempo que ia demorar para convencer o menino. Se tivesse que endurecer ia ser pior, pois aí ia ter que dar sermão, deixar de castigo, e iam perder a hora do mesmo jeito.
"Olha, você pode comprar um sorvete. E logo vai começar a Disneylândia! Se você for, vai perder!"
Parou de miar por dois segundos. Disneylândia era bacana, tinha o Pato Donald.
"Dá dois sorvetes, então?" gemeu.
"Vamos, então", disse a mãe, prática. "Você pega os sorvetes e volta para casa."
A sorveteria, recém-inaugurada, funcionava em uma saleta a dez passos de casa, mas ele não podia ir lá sozinho. Precisava usar as mãos para subir os dois degraus desmesuradamente altos.
"Um de morango e um de chocolate", sentenciou. Na saída, já não tinha olhos para mais nada. Desceu os dois degraus pulando com os pés separados, para não perder o equilíbrio, e foi andando para casa, lambendo ora a casquinha da esquerda, ora a da direita, sob o olhar divertido dos pais, que se apressavam para seu compromisso.
"Oba, me dá um!" disse o irmão, assim que o viu.
"É meu, a mãe comprou pra mim! E é pra ligar na Disneylândia!"
"Ah, só uma lambidinha, depois eu devolvo!"
"Tá, mas liga a Disneylândia!"
Sentou na sofá, absorto com o Prof. Ludovico, que tinha um sotaque engraçado e falava coisas que ele não entendia.
"Vamos trocar, agora? Deixa eu experimentar esse."
Não havia se dado conta que o irmão tinha dez anos a mais de boca, e o sorvete que voltou era quase só casquinha.
"Você comeu tudo!" reclamou, mas não queria perder o desenho para brigar.
Mas o prof. Ludovico já se despedia e a música de encerramento começava. Olhou para o lado e já não viu o irmão.
Sentiu-se sozinho, injustiçado, mas não havia ninguém para quem chorar. Desligou a televisão e foi folhear seus livros.

Presente imerecido

J.M.Coetzee diz em seu Diário de um ano ruim que uma prova de que o mundo na verdade é um bom lugar, e que talvez até exista um Deus misericordioso que olhe por nós, é que cada pessoa que nasce recebe de herança, sem que tenha feito nada para merecer isso, a música de Johann Sebastian Bach.
Às vezes penso que se por alguma catástrofe todas as músicas e partituras e gravações fossem perdidas, uma irmandade de músicos se reuniria para tentar recriar, conforme indicações dos que as conheciam, pelo menos algumas obras de Bach, para que as gerações futuras tivessem alguma esperança. Sim, como em Fahrenheit 451, mas pense bem: pode-se viver sem Ulisses ou Anna Karenina, mas não é justo se viver sem Bach!
Clique na "animação musical" abaixo e faça sua vida melhor!


Causo causal

Seu Latércio levantou devagar do degrau onde tomava a fresca, para atender o telefone que gritava na sala. "Já vai, já, vai", resmungou para o aparelho que não o ouvia.
"Eu!", gritou no bocal. A voz do outro lado, ainda se acostumando às manias do caseiro, soou irritada.
"Oi, Latércio, tá tudo bem por aí?"
"Fora a falta d'água, tá tudo bem."
"Ué, faltando água por quê? O poço secou?"
"Não, o poço tá cheio, só não tem como usar a bomba."
"Quebrou a bomba?"
"Quebrou não, não tem é luz pra ligar."
"Acabou a força? Tem que ligar para a Companhia e avisar."
"Avisei, mas sem poste não dá pra ligar não."
"Ué, e o que aconteceu com o poste?"
"Queimou, com o fogo que pegou no mangueiro."
"Que é isso, homem? Como pode ter pego fogo no mangueiro?"
"Ué, pegou da casa."
"Minha casa pegou fogo, Latércio? E é assim que você me diz? E como é que começou o fogo?"
"Diz que foi da vela do velório."
"Como assim? Velório de quem?"
"Da sua senhora, Deus a tenha."
....
"Mas fora isso está tudo bem!"

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Palimpsesto

Em vão descamo o pergaminho quase roto
e cubro cada milímetro com novas histórias,
pinceladas a óleo sobre uma aquarela.
O passado é como a umidade sob a escada,
penetra as camadas e vem tingir de memória
minha realidade de papel crepom.

terça-feira, 27 de julho de 2010

'Fíumi di chorá'

Era assim que uma locadora perto de casa anunciava seus dramas, ao passo que as comédias eram 'Fíumi dirri'. Claro que isso foi há muitos anos, quando locadoras eram lugares que se prestavam a alguma criatividade.

O fato é que para mim comédias sempre renderam poucas risadas e os dramas típicos, poucas lágrimas. Mas claro, as comédias querem tirar risos de palavrões e vulgaridades, que deixam hilários adolescentes e reprimidos em geral, e os dramas apelam às emoções mais superficiais ou mais fáceis de extrair. Não reclamo. Só o cinéfilo mais empedernido pode passar incólume vendo pela primeira vez A vida é bela, de Benigni, por exemplo. A emoção é calculada, mas está aí a arte do cineasta: os botões certos foram apertados, a catarse é feita.

Mas há filmes que só cada um de nós sabe por que nos afeta. A arte do autor é responsável por uma parte da mágica (e não por acaso Orson Welles posava de prestidigitador), mas a outra parte está em cada um de nós, é a arte lançada ao mundo para encontrar seu público.

Minha mulher vive mexendo comigo porque choro em filmes, e por isso há filmes que evito assistir com ela. Entre eles, os quatro primeiros do ranking são:
4. Mulan. É isso mesmo, o filme da Disney. Criativo, boas músicas, pouco mais que isso, mas duas cenas me matam: quando o pai descobre que Mulan foi à guerra no lugar dele e cai na chuva, impotente, e quando ela volta lhe trazendo honrarias que ele descarta para abraçar a filha que imaginava perdida.
3. O céu mandou alguém. Um legítimo John Ford, estrelado por John Wayne, em que um trio de ladrões (os três padrinhos do título original) sofre o inferno no deserto para salvar um bebê recém-nascido.
2. A felicidade não se compra. A fábula já não tão moderna de Frank Capra sobre George Bailey, o cara legal que se acha um fracassado. Não bastasse ele não ouvir do mesmo ouvido que eu (mas por um motivo mais heróico), George é o sujeito que fica feliz por ter sua família de volta, mesmo que tenha de ir para a cadeia.
1. A cor púrpura. Sempre que começo a assisti-lo me irrito com os excessos de Spielberg, o crescendo de violinos logo no começo, as escolhas de imagens puramente estéticas, a sequência ininterrupta de desgraças, mas com 15 minutos de filme é impossível não entrar no mundo que ele traduziu do livro de Alice Walker. Você pode perdoar os cortes na história e os gimmicks quando ele lhe dá a volta da Sophie à vida quando Ms. Celie anuncia que vai embora, o arrepio em todos os pelos do corpo quando Shug Avery pára de cantar um blues no Harpo's e irrompe na igreja de seu pai cantando um spiritual. OK, o homem não economizou, todas as músicas são do Quincy Jones, mas a mágica é do Steven.
Os seus 'fíumis di chorá' podem ser outros, com outros temas, mas os meus são esses. Não nego, as relações são óbvias, a família que tantas vezes deixamos de lado por escolhas mais 'urgentes' ou 'práticas', mas que realmente falam ao que somos em nossa essência. Família para curtir, para enjoar, para sentir falta.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Histórias da Vó Anna

'Descalço' que era, não entendia metade das histórias, que tinham sabor de molecagem. Nascida aqui mas espanhola de tudo, Vó Anna não era de medir palavras. Sempre fará parte do meu imaginário a história do "Largo maio". Era como uma narrativa de Pedro Malasartes, uma arrevesada jornada do herói. Nem vou tentar contar como ela, mas depois de 30 anos a versão em minha cabeça ficou mais ou menos assim:

Em uma pequena fazenda na Espanha, o marido tem de viajar para fazer negócios. Sabendo que iria ficar fora muito tempo e que maio seria um longo [largo, em espanhol] mês de seca, armazena em um quarto os mantimentos que seriam necessários para atravessá-lo. "Guarde bem esses mantimentos", disse à esposa, "são para o largo maio". Ela ficou sem entender quem era esse tal de Largo Maio e por que precisava de tanta coisa, mas se despediu do marido e continuou cuidando da vida. Passado algum tempo, surgiu um homem na fazenda pedindo comida. isso não era comum, então ela perguntou: "Você que é o Largo Maio"? O homem estranhou, mas preferiu perguntar por que. "É que meu marido mandou guardar toda aquela comida", disse ela, indicando o cômodo abarrotado, "para o Largo Maio".
O viajante, que não ia desprezar um golpe de sorte, respondeu que claro que era, e carregou tudo com ele.
Lá pelo meio de maio o Marido voltou e encontrou a mulher meio morta de fome. Quando soube o que aconteceu, gritou de raiva: "Não é possível alguém ser tão burro!"
Pegou suas coisas e disse "Vou me embora daqui, só volto se encontrar alguém mais burro que você!"
Ele sai, mas ela quer ir com ele. Mais calmo, ele se compadece. "Pode vir, mas traz a porta", querendo dizer que ela devia fechar a porta da casa. Já havia caminhado um bom quarto de hora quando olhou para trás e viu que a mulher vinha carregando a porta nas costas.

Esse é o começo de uma infinidade de aventuras, nas quais foram encontrando estupidez em cima de estupidez. A hora de dormir sempre chegava antes do fim da história, mas acho que no final ele voltaria para casa com a mulher.

domingo, 25 de julho de 2010

Amanda's day II


Pais de primeira viagem sempre fazem isso. No primeiro aniversário dos filhos fazem a maior festa, se cansam, e o filho mal registra. Quando o pimpolho é mais velho e vê as fotos, reclama que nunca mais fizeram uma festa daquelas. Pena que não guardaram toda aquela energia para mais tarde...
Lembro-me do primeiro aniversário da Amanda. Mais uma vez passando as férias longe de casa, dessa vez em São Paulo. Lembro-me de meu irmão estendendo uma lona nos fundos, os dedos de engenheiro sangrando da atividade inaudita, e de minha cunhada esmerando-se em milhares de doces enfeitados, tudo feito à mão. Que bonitinhos os dois, tenros vinte e poucos anos, já casadinhos, com cachorro e bebê.

Valeu a pena. A Amanda pode não se lembrar, mas tão fofinha com seu sorriso de olhos semicerrados e seu jeitinho de olhar pendendo a cabeça para o lado, herdado do pai, já era a alma da festa.

Amanda's day

As manhãs de meio de julho eram frias, Vó Anna chamava cedo, para eu aproveitar o dia, e dava para ver a geada. Café da manhã com leite gordo das vacas do seu Alcides, era combustível até a hora do almoço. Correndo pela estrada, atirando minhas flechas para o ar com meu arco/estilingue e correndo para buscá-las, logo esquentava. Mas quando o sol baixava para o lado do tanque, era hora do banho. No sítio não tinha energia elétrica, e encarar o chuveiro frio depois que a noite caía era difícil. Banho tomado, sentava na varanda até a abuelita acender o lampeão a gás. Às vezes ela também se sentava na varanda para tomar a fresca e cantava sua malaguenha triste. Entendia o suficiente de espanhol para saber que falava do filho que foi morto e chorava. "Não gosta que a vó canta, Roger?" "Gosto, vó, gosto sim", e continuava a chorar. Tinha 12 anos recém completos e passava as férias da minha vida, longe de casa, perto da minha história.
Logo a Vó chamava para comer, e ao redor do lampião contava suas histórias, sempre engraçadas, as partes picantes eu não entendia, mas absorvia o máximo que podia.
Um dia bem cedo ouvi movimento na estrada. Sabia que no fim de semana vinham me buscar, mas me admirei que já tivessem chegado. Corri para a porteira e encontrei minha irmã. Ela só disse: "A Amanda nasceu". "Ela é uma gracinha!"

domingo, 18 de julho de 2010

Saudades bailaoras

A luz que mal bastava para o letreiro do teatro concedia reflexos para tirar da escuridão o estacionamento de terra e cascalho. A porta de aço baixada, parcos carros estacionados. Cheguei cedo para poder falar com as meninas, mas não tão cedo assim! "Será que é aqui mesmo?" A dúvida se desvanece quando alguém grita meu nome e corre em minha direção. É nossa Manuela, a alegria encarnada! Pulamos de alegria, não é brincadeira! Mari, Ximena, Rê, que alegria rever minhas coleguinhas! E minha querida mestra Denise, também esperando na garoa com suas pupilas e seu grande Vitor, meu mestre de cajon. Quem liga para a chuva e o frio, a arte é maior que o atraso do sujeito que não morreu no caminho de morte morrida, mas quase morre de morte matada na chegada.
Arte sofrida essa, mas arte viva. Em seus vestidos de baile, minhas amigas se transformam na alma flamenca e deixam transidas até as criancinhas que até então zanzavam distraídas pela plateia, emocionando com a intensidade de seu olhar e a força de seus taconeos.
"A arte é uma amante ciumenta", e vingativa quando abandonada. A cada dia de descaso ela se distancia mais de você e, se você quiser voltar para ela, terá de se arrastar, se humilhar, se doar de corpo e alma. Ela é orgulhosa... mas agradecida. Um mero lampejo de seus favores faz com que tudo valha a pena.

sábado, 10 de julho de 2010

De volta ao chet



Meu amigo Chet é para mim o grande mistério do Jazz. Como cabia tanta doçura em um homem tão cabeçudo, destrutivo, destruído. Acho que isso é viver as paixões a cada momento. Você perde, mas a arte ganha. Nós também.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Tem coisas que só o Chico faz por ti

"Mesmo que você feche os ouvidos
E as janelas do vestido
Minha musa vai cair em tentação
Mesmo porque estou falando grego
Com sua imaginação
Mesmo que você fuja de mim
Por labirintos e alçapões
Saiba que os poetas como os cegos
Podem ver na escuridão
E eis que, menos sábios do que antes
Os seus lábios ofegantes
Hão de se entregar assim:
Me leve até o fim
Me leve até o fim"

Choro Bandido, Chico Buarque

domingo, 4 de julho de 2010

Alamedas

Na minha memória abri espaço
para uma caixa de papelão verde
para registrar e aconchegar
as lembranças de hoje e de amanhã.

Tangenciando as árvores, seu texto
conduziu meus passos quase a esmo,
pairando sobre nuvens de fumaça
como debutante em apresentação.

Alternativa, a realidade hoje se esmera
tecendo liberdades e confissões,
enquanto o dia arde e se recria
em beijos de amizade e de ternura.

Sorrindo sozinho, encho os pulmões
e sorvo a doçura de seu segredo,
embriagado de orgulho e receio.

sábado, 3 de julho de 2010

Um rio profundo

Desenho em um papel uma linha, dela verte poesia.
Como nascente voluntariosa, ela me arranca o lápis da mão e se espalha, irrigando meus desertos e me assustando com suas contradições.
Resisto, mas não convenço.

domingo, 13 de junho de 2010

Idades

Quando criança, meu mundo era aberto,

questionava o que via e ouvia, opinava sobre o que não sabia.

Quando adolescente, pensava como velho,

inocente às contradições do mundo,

cego e surdo às minhas próprias pulsões desencontradas.

Jovem, contemplava sem ironia as indiscrições,

refestelava-me sem culpa em minha paz de espírito alienada.

Adulto, tomo por sabedoria a renúncia e por pragmatismo a covardia,

procrastinando rupturas que já não teria tempo para viver.

Falsa e falaciosa idade da razão, porque o nada não se contenta em só ser.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Descobri Chet Baker na capa de um disco

Era um LP que compramos para um colega, com uma vaquinha no trabalho. A capa me chamou a atenção, uma foto antiga e amarrotada, um rosto sofrido. Era a trilha sonora de Let's get lost, filme de Bruce Weber sobre Chet Baker. A voz que conheci no clip abaixo e não cansa de me emocionar.




Foi uma revelação essa canção (de Elvis costello, imagine só!) e foi um custo encontrar o disco para mim. Foi o primeiro CD que comprei, quando os players eram caros e eu não podia ter um. Logo estava colecionando seus CDs, muitos dos quais fui perdendo para amigos que os pediam emprestados, mas tudo bem, que ele faça aos outros o que fez por mim.

I get along without you very well, of course I do...

Except when soft rains fall,
and drip from leaves, then I recall
the thrill of being sheltered in your arms, of course I do.
But I get along without you very well...

Ouça isto com o Chet Baker cantando e tocando e descubra a força de sua leveza.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

If tomorrow never comes II

Mas o que realmente me lembrou esse disco agora foi a canção "If tomorrow never comes". Não importa que na canção o personagem esteja falando de seu parceiro, mas o que ele diz. Se não houver amanhã, se um de nós não estiver mais aqui, o outro saberá o quanto o amávamos? O amor que lhe dedicamos é suficiente para durar? Por mais que tenha visitado meu pai tantas vezes e me sentado a seu lado para assistir a seu programa favorito, será que foi suficiente para lhe mostrar o quanto o amava? Para lhe mostrar que agora, adulto, conseguia entendê-lo e percebia o quanto do que eu era vinha dele? Quando ele se foi, fazia semanas que não falava com ele pessoalmente, adiava as visitas por pressões de trabalho e tentava fazer de conta que não era verdade o que eu já sabia: que ele estava indo embora. No fim, eu poderia até me consolar, egoísta, em poder lhe dizer adeus, em poder lhe dizer pela última vez que o amava, e que ele era importante, e que ele fora um pai de verdade, o melhor do mundo; mas já era tarde demais. Seu coração batia, mas ele já não estava lá.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

If tomorrow never comes I

Quando Renato russo lançou seu Stonewall cellebration muito se comentou sobre a maneira como ele assumidamente transformava as letras para falar de outro homem. Felizmente, as críticas positivas quanto à qualidade musical do disco superaram um certo ranço homofóbico da época. Exceto por 'aqueles teclados', é um disco cuja qualidade ainda me espanta. Renato cantava o que gostava, e escolhia letras que expressavam o que sentia. Não tinha medo de soar kitsch e o exagero era parte essencial de sua expressão. Ouça seu "Somewhere" e entenda.

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Pobres analistas II

O Daniel San tinha analista? E o Rocky Balboa? O Luke Skywalker? E o Harry Potter, deita-se no divã de algum bruxo psicólogo? Ou você acha que eles não precisam disso porque são pessoas de ação? Isso nos leva a uma outra obsessão do cinema americano; a jornada do herói (divulgada de maneira tão didática por Joseph Campbell e empregada a posteriori por George Lucas). O herói não tem analista porque tem mestre. Senhor Miyagi, o treinador, Yoda, Dumbledore... todos desempenham a mesma função. E qual seria essa função? A de dar uma direção às vidas dos pobrezinhos. Todos esses heróis começam suas jornadas como pessoas atormentadas, pois não se encaixam no ambiente mesquinho onde foram criados, essa 'impertinência' os torna rebeldes ou deslocados.
Na aldeia, onde a vida de todos segue o mesmo rumo e não há perturbação da ordem, os jovens destrambelhados são orientados pelo feiticeiro, pelo pajé, pelo cura, pelo ministro. Essas figuras paternas, mais ou menos assustadoras, assumiam seu alter-ego de superego e aspergiam paz de espírito mostrando que a vida é assim mesmo, porque os espíritos/os deuses/Deus assim designaram. O certo e o errado era claro e não havia exemplos diferentes. O desvio era ruim e pronto, punido com a morte, com a humilhação ou com umas boas palmadas. Era fácil conformar-se e ser feliz com sua vidinha, pois não havia nada melhor à vista, não havia por que se rebelar. Os poucos mais brilhantes iriam se refugiar nas poucas funções artísticas ou de liderança disponíveis e se destacariam dentro de padrões estabelecidos.
Nosso herói deslocado é aquele que busca algo além da experiência de seus pares, que descobriu ou intuiu que há algo além da satisfação frugal de sua mesa cotidiana. Mas a realização de seus desejos/pulsões/missões depende de se livrarem de sua casca velha, para poderem expandir seu universo e alcançar uma compreensão melhor de seu mundo e dos mundos que o cercam. Sabem, no entanto, que ao irromper sua casca protetora vão se ofertar, tenros e frágeis, às críticas dos antigos pares, dilacerando-se por antecipação. Quando conseguem vislumbrar o caminho a sua frente, enchem-se de coragem, enfrentam as intempéries e se fortalecem em suas novas dimensões e perspectiva. Sem o mestre para guiá-los, no entanto, vão se encolher, escusos, em suas antigas carapaças.
Os normais neuróticos da vida moderna tentam encontrar a abençoada organização da aldeia em um mundo sem regras claras; onde milhões de devotos de várias religiões diferentes se proclamam os únicos que estão certos, atestando assim que todos estão errados; onde os caminhos são tantos e tão potencialmente aceitáveis que surge a necessidade de criar regras para garantir a segurança. Guetos autoimpostos dão a seus prisioneiros a sensação de pertinência que lhes falta, limitando artificialmente seu universo em um micromicrocosmo em que podem se sentir 'contentes' em sua mediocridade. Nessas condições, já não deveria haver necessidade de mestre, pois os caminhos estão abertos, mas a programação social e familiar nos impede de aceitar a liberdade, ou, aceitando, de entender o limite da falta de limite. Faltando-nos a capacidade bovina de nos conformar com a primeira forma que nos é oferecida, também nos falta a habilidade taurina de cavar nossa própria arena, levantando poeira e lutando segundo nossas próprias regras.
Nossos pobres analistas, em seus múltiplos disfarces, vão nos resgatar do beco, de cima do muro, da zona morta de quem não consegue ficar nem ir. Ouvindo freudianamente, fazendo cortes lacanescos ou fechando o círculo, contando histórias como um avô à beira do fogo, lançam fachos de luz para possíveis realidades que podemos escolher como nossas e em que nossas manias façam sentido. Enquanto não escolhemos alguma dessas janelas e não nos decidimos a saltar, são necessários. Mas sempre há alguns que começam a entender que o local onde preferem viver está pronto e mobiliado dentro de si mesmos, qualquer que seja o ambiente externo, e que podem conviver com qualquer natureza e falta dela porque seu universo é individual mas todo-inclusivo. E nossos pobres analistas acabam ficando de lado, dobrados e guardados no armário de brinquedos como um cobertorzinho de pelúcia azul.

terça-feira, 11 de maio de 2010

Pobres analistas I

Acho curiosa a fixação dos roteiristas americanos por analistas, só superada pelos julgamentos. Em inúmeros enredos o analista assume uma dimensão mítica, de mestre espiritual, enquanto em outros envolve-se na ação. Vêm à memória o analista vivido por Robin Williams em Gênio indomável, que usa a empatia para mostrar o caminho a alguém capaz de perceber a manipulação. Também gosto do analista transformado em gourmet de Sem reservas, cuja função básica é, assumidamente, forçar a protagonista a mudar seus padrões estabelecidos, tarefa mais difícil para o shrink intransigente de Melvin Udall em Melhor impossível. Na série Monk, o analista tem função preponderante, dada a natureza do herói, mas nos poucos episódios que assisti me chamou a atenção por ser o único personagem crível de uma série de personagens unidimensionais e caricatos.
E é claro que são alvo de sátira (não, não vou mencionar o analista de Bagé! Ih, já mencionei...). Um palestrante motivacional disse uma vez que "terapia só serve para você assumir que seus pais foram realmente culpados por tudo, entendê-los e fazer as pazes com isso". Sempre me lembro da tirada em Crocodilo Dundee em que alguém explica ao 'sensível' caçador por que vai ao analista e ele diz "Ah, você não tem amigos, não é?" Pensando bem, ele tem sua razão. Um amigo de verdade elimina grande parte da necessidade de um analista. Até porque após alguns meses de sessão muitos analistas acabam virando 'amiguinhos' que recebem para deixar você passar uma hora inteirinha falando só de você. O pior é que às vezes se esquecem disso e começam a falar deles, contando histórias que não têm nada a ver com seus problemas! Desaforo!
OK, analistas sérios vão se arrepiar por eu dizer isso, mas ora, tem picareta em qualquer área. E, como e qualquer área, os grandes profissionais são poucos e a maioria tem de se virar com os 'maomeno'. A boa notícia é que para nós, meros neuróticos (como me explicou uma amiga, neuróticos somos todos nós, em maior ou menor grau; os diferentes são os psicóticos), os riscos de uma terapia assim assim não são tão grandes, e sempre há melhora, por pior que seja o profissional (pelo menos no começo). Minha teoria para isso deriva da administração: quando você pega uma empresa mal administrada, bagunçada, qualquer pessoa de fora com o mínimo de bom senso pode fazer melhorias (tira essa máquina do caminho, registra os pagamentos, cobra os débitos, coisas assim). Melhora-se muito e rápido, mas depois de certo ponto surge uma estagnação. A partir daí, só um consultor realmente bom vai dar jeito.
Várias pessoas que conheço pararam suas terapias porque começaram a perceber que seus analistas não eram inteligentes, ou cultos, ou informados o suficiente. Fico imaginando que o analista do Woody Allen deve ser um gênio, ou então deve só ouvir, fazendo um aparte a cada 40 ou 50 sessões... Humm, boa estratégia.
Mas... para que serve mesmo a terapia?

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Interlúdio doméstico

Ela não gosta de arrumar a cama (quem gosta?) e sempre me chama para ajudar. Quando chego para 'ajudar', ela vai fazer outra coisa e me deixa arrumando sozinho. Hoje não caio nessa e ela vem me atazanar, graciosamente, fazendo piadinhas ou simplesmente cócegas. Estou começando um post aqui, ouvindo meu Beethoven mono no fone de ouvido (não é o fone de ouvido que é mono, sou eu) quando ela perguntou por que nunca escrevi um post sobre ela. Disse que meu blog não é sobre assuntos familiares, mas então ela se sente ignorada e começa uma conversa consigo mesma:
"Sabe, meu avô teria um blog." "É mesmo? Por quê?" "Ora, ele escrevia um diário, o blog é a versão moderna de um diário." "É mesmo?" e por aí vai...
"Você é engraçada", disse a ela. "Chatinha, mas engraçada."
"Ah, quer dizer que você não vive sem mim?"
"Não disse isso!"
"Então você vive sem mim?"
"Vivo, ué, mas só se precisar, não disse que é o que eu quero!"
"Você é horrível, odeio você!", diz, e sai batendo a porta do quarto.
Trinta segundos se passam.
"Vem me dar beijinho de boa noite?" ela mia de lá.
"Não", eu digo. E vou.

domingo, 9 de maio de 2010

Alegria ou felicidade

O que mata aqui é o verbo que vai junto: ser ou estar. Você pode dizer que está alegre hoje, mas não deveria dizer que está feliz. Felicidade é uma condição; alegria é um estado, passageiro por definição. Você pode sair alegre do cinema, mas continuar sofrendo em uma vida para a qual não vê sentido. Mas você pode estar triste por alguma coisa e continuar com sua vida e voltar a se sentir bem. Mas qual é a diferença? Se você está sempre alegre, não quer dizer que é feliz? Até pode ser, mas vejamos: primeiro, ninguém está feliz o tempo todo, nem o poodle da vizinha. Em segundo lugar, felicidade é algo que só se constata a posteriori, quando se tem alguma perspectiva sobre os eventos e situações. É por isso que não existe adolescente 'feliz'; eles podem até estar alegres grande parte do tempo, quando podem fazer só o que querem, mas sempre se sentem as piores criaturas do planeta porque não conseguem enxergar suas vidas em perspectiva.
Para mim, felicidade é um estado de espírito que permite olhar para trás em qualquer momento de vida e pensar: "OK, não é fácil, mas vale a pena." Não vamos conseguir mudar o mundo, nem temos voz sobre a maioria das coisas que nos acontecem, mas entendemos e nos permitimos aproveitar o que há de bom, em vez de remoer o que há de ruim.
Gosto de um verso de uma música ruim do Renato Russo em que ele diz que "hoje a tristeza não é passageira". É assim mesmo, às vezes não queremos que ninguém venha dizer que vai passar, para não ficar assim. Temos direito à tristeza, a lamentar o que perdemos ou o que nunca foi nosso. Mas cada um tem uma obrigação consigo mesmo de poder sentar ao sol do início de inverno, relaxar e, num sorriso quase imperceptível, sentir-se inundar do prazer de estar vivo...

domingo, 25 de abril de 2010

Hoje não quero saber de nada...

...porque é aniversário de meu amigo Omar, o cara mais legal do mundo. Gentil, generoso e bem-humorado, ele é a alma da festa, só que não vai ter festa porque resolveu viajar para Berlim, Nice e outros lugares chatos, em vez de ficar aqui bebendo com os amigos! O que posso fazer, são as escolhas que as pessoas fazem...
Meu mais antigo e constante parceiro de botequim, já acompanhamos mais da metade da vida um do outro, e isso em nosso caso é bastante tempo. Conhecemo-nos na faculdade, no grupinho que, reunindo pessoas do 'interior' ou quase, foi apelidado pela ala cool da classe de "cantinho do faraó". Melhor não lembrar o Omar disso, pois dizem que no trote o enrolaram como uma múmia em papel higiênico... Quem manda ir já na segunda? Fui só na quarta e o máximo que tive de fazer foi desfilar sem camisa para as meninas (eu era tímido, não adiantou nada). Mas já nesse dia conversamos e ficamos inseparáveis. Incrível como conseguíamos nos encontrar sempre, em uma época em que não havia celular (nem telefone eu tinha)! Na época tinha um Ponto Chic em frente ao Shopping Ibirapuera, o cardápio era provolone à milanesa e chopp, terminando com um expresso. Com o passar dos anos, o point passou a ser o Café Creme, na Paulista, e o número de chopes diminuiu e aumentou o de cafés, mas a qualidade da conversa se manteve. Se você quiser falar de cinema, música, vinis antigos e até de negócios, o Omar é o cara. E ele não tem meias palavras: se aquele filme do Woody Allen é ruim, ele vai dizer que é ruim, e se você não gostou do Bastardos inglórios ele vai explicar o que você não entendeu, sem fazer você se sentir ignorante. Mas ele também pode discordar de você numa boa, e cada um na sua... Horas e horas voam, conversando com ele.
Agora crescemos, somos homens de negócios, e não conseguimos nos encontrar mais que umas três ou quatro vezes por ano, mas sempre é como se não tivesse passado um dia. O gibi do Sandman tem uma história em que dois personagens se encontram a cada cem anos para conversar, e ao longo dos séculos percebem que são o melhor amigo um do outro. Para os verdadeiros amigos, o tempo não passa. É um amor como o de família, mas sem nenhuma obrigação. Ou, se existe obrigação, é com você mesmo, pois não quer se negar o prazer da companhia de alguém que é especial para você.
Neste dia desejo tudo de bom para meu amigo, e para todos a felicidade de ter uma pessoa especial com quem compartilhar a vida, mesmo que só algumas horas por ano.
Prost!

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Hoje estou apocalíptico

Enquanto assinava alguns documentos, conversava com uma colega sobre a gravidez de uma outra e fiquei sabendo que era "mais um menino", como a maioria dos nascimentos de que ficamos sabendo nos últimos tempos. O comentário de que estavam nascendo só meninos me trouxe à mente uma idéia estranha e pensei alto: "será que vai haver uma guerra?" Não me peça para explicar de onde tirei essa associação catastrófica. Eu mesmo descartei o comentário idiota, dizendo "que horror" e retomei meu trabalho. O que tem a ver? Historicamente, as guerras matam mais homens, mas nem por isso nascem mais homens às vésperas delas. Foi um pensamente idiota, mas me perdoo, pois ele tem um motivo.
O mundo de conforto de quem tem conforto está ameaçado. Para quem vive o dia, visando somente chegar vivo ao dia seguinte, como tantos, não faz muita diferença, mas para nós que podemos curtir nossa Internet, nossa TV a cabo, nossos DVDs e games, faz muita. Por mais que as épocas mudem, no fim somos pecinhas no jogo da natureza e da sociedade, o que falar mais alto naquele momento. Não escapa à atenção de ninguém que o mundo está mudando ao nosso redor, e que vamos presenciar, nos próximos anos ou mesmo meses, mudanças climáticas e estruturais nunca vistas, e essas mudanças podem causar conflitos piores que as guerras do século XX. Infelizmente, o que podemos fazer hoje são soluções para um futuro que não será mais como o presente; temos de agir, mas não para evitar as mudanças: elas já ocorreram. O que resta é a acomodação e o equilíbrio. Koyaanisqatsi, em 83, tentava falar poeticamente sobre esse desequilíbrio, mas foram precisos 20 anos e um vice-presidente americano com um Powerpoint melhorado para a questão ambiental ser ouvida como algo que não é só para 'doidos que lutam pelos pandas e pelas baleias'.
Mesmo que parássemos hoje de emitir CFC, o que está presente na atmosfera vai continuar destruindo a camada de ozônio por mais 15 anos, tempo suficiente para destruí-la quase completamente. Mesmo que cessemos hoje de empilhar lixo e emitir poluição, o que já está aí vai poluir grande parte da pouca água que resta e causar doenças por muitos anos. O que não quer dizer que não devamos fazer nada. A Terra está nos mostrando que existe, que precisa de equilíbrio e que vai fazer com que isso aconteça, quer queiramos quer não. Se alguns milhões de formiguinhas humanas desaparecerem no processo, é irrelevante. Acho que essa consciência de que o que fazemos afeta, sim, o planeta e nossa própria sobrevivência pode ser o empurrão que faltava para mudarmos nossa maneira de agir.

domingo, 18 de abril de 2010

Unindo os pontos

Milena sempre achou que uma antiga colega de trabalho fosse meio 'loki', pois ela contava, comovida, como Deus agia na vida dela e permitia ao Marido cego enxergar o sorriso da neta. É isso mesmo, o marido perdera a visão devido a um estágio avançado de diabetes, mas na sua eterna noite sempre comentava como era lindo o sorriso da netinha, e de fato a neta sorria para ele. A esposa, emocionada, via nisso a mão de Jesus, e se sentia abençoada e compensada porque pelo menos isso ele podia enxergar.
Lendo sobre lesões cerebrais em um livro de divulgação científica, comentei com a Milena sobre um estudo que mostrava que é possível que pessoas que ficaram cegas continuem a perceber emoções nos rostos em fotografias. Segundo relatado por Fernando Reinach, é possível que em alguns casos a retina e o nervo óptico funcionem normalmente, mas algo impeça que a imagem seja enviada à consciência, assim caracterizando a cegueira. Ainda assim, parte da informação visual pode ser transmitida para outra parte do cérebro, que processa emoções, permitindo à pessoa 'adivinhar' a emoção expressa em um rosto fotografado. Ao comentar isso com a Milena, ela juntou os pontos: era isso que acontecia com o marido da colega! As informações visuais não chegavam mais à área do cérebro dele que reconhecia as imagens, mas ele reconhecia as emoções. Dada a sua tragédia pessoal, é possível que poucas pessoas a sua volta se mostrassem muito felizes, então fico imaginando o impacto do invisível sorriso da neta na vida desse homem.
O personagem principal da série House se queixa de que Deus sempre leva o crédito pelo que a ciência faz. Não deixa de ser verdade, mas eu jamais mencionaria àquele casal essa explicação científica. A mão de Deus me parece um consolo melhor.

sábado, 10 de abril de 2010

Almoço em Ribeirão Bonito

O lugar era antes um bar, mas agora não serve mais bebidas, "para não ficar aquela homarada bebendo", exceto aos domingos, quando serve cerveja nas mesas. Se for lá, não se prenda às saladas, pois as folhas são bem lavadas mas têm somente azeite velho como tempero, a gente daqui não é dessas coisas. Vá direto aos 'quentes': abobrinha refogada, purê de mandioquinha, frango à milanesa e calabresa acebolada, acompanhados por um feijão 'caldoso' com tempero no ponto certo e arroz (quem se preocupa com arroz?). O suco de laranja, cujo espremedor foi instalado a pedido de minha mãe, faz um sucesso merecido, e as sobremesas são caseiras, como tudo o mais. OK, também tem refrigerante, que é um estabelecimento moderno!
Quando vim trazer a Mãe para casa, para a reunião da Amarribo, não eperava ficar para almoçar, mas, conversa vai, conversa vem, o ritmo da cidade vai tomando conta. A reunião, marcada para as 20h, foi começar depois das nove, ainda bem que o dia seguinte era sábado. As pessoas foram chegando aos poucos e tive tempo de ler os recortes de jornal ampliados em grandes quadros pelas paredes. Li sobre a história da ONG que desde 1999 luta contra a corrupção nas prefeituras brasileiras, em uma preparação para uma reunião agitada, em que pessoas aparentemente simples da cidade mostravam inteligência e combatividade. A Mãe diz que a reunião foi produtiva, mas todos lamentam a falta de quórum, pois muita gente deveria estar lá para entender como fazer valer seus direitos. Foi uma aula de cidadania, mas também um 'recordatório' de que somos parte de nossos bairros e de nossas cidades, e temos a obrigação de olhar em volta e fazer alguma coisa...

quarta-feira, 31 de março de 2010

Livro digital 1

Fiquei assustado com um comentário durante o congresso do livro digital: "se o novo leitor, nativo digital, é mais desatento e menos interessado e não tem hábito de leitura, então o livro digital deveria ser uma versão resumida e menos profunda que o livro físico?" Ora, não podemos perder de vista duas coisas: primeiro, que o nativo digital não é burro; segundo, que livro é livro em qualquer formato. Por mais que possamos agregar recursos, enhance o produto, o livro é um conteúdo textual com determinadas características que não mudam, qualquer que seja seu formato ou o meio em que é disponibilizado. Os leitores 'nativos digitais' que lêem livros querem ler livros, não os resumos deles (salvo quando obrigados pela escola; atire a primeira pedra quem nunca leu um resumo de livro para o vestibular). Temos de lembrar que o texto escrito é um produto, e sua eventual versão digital é o mesmo produto! Caso seja adaptado para um roteiro de vídeo (e o próprio vídeo), para uma história em quadrinhos ou para uma versão resumida, então estamos falando de produtos diferentes, com objetivos diferentes... Cabe a nós editores, professores e pais estimular o hábito de leitura, jamais substituí-lo pela fruição de outros formatos, por melhores que estes sejam, por um motivo simples: a leitura é uma atividade insubstituível em sua capacidade de desenvolver a capacidade cognitiva do indivíduo. Uma pessoa que não lê está menos preparada para a vida e para o trabalho e não conseguirá ser um cidadão completo. As exceções, honrosas ou não, só confirmam a regra...

"A arte é uma amante ciumenta"

É o que dizia nosso regente, Marco Antonio da Silva Ramos, nos ensaios que alternavam piadas e alta concentração. Sabia que todos trabalhávamos em outras coisas e que dedicávamos à música uma pequena parcea de nossas horas, e isso nem sempre era suficiente. "O coro é amador mas o público não tem nada a ver com isso", dizia também, instigando-nos a dar o máximo pela qualidade daquele nosso 'segundo trabalho'. Sempre defendo esse conceito de 'segundo trabalho' para uma manifestação artística, se não trabalhamos com arte. Não é o que fazemos para viver, mas é o que vivemos para fazer!
Não gosto do conceito de hobby, pois remete a algo que fazemos sem maiores compromissos ou, pior, ao que realmente gostamos de fazer, mas a que não podemos dedicar tempo pois "temos de trabalhar". Acho que devemos sempre encontrar prazer em nosso trabalho, pois é a ele que dedicamos a maior parte do dia. Mas de tanto nos esforçarmos no trabalho oficial acabamos nos cansando e perdendo a perspectiva e a capacidade de resolver problemas (que é o que mais fazemos). A solução é ter outra atividade igualmente demandante, mas que nos exija outra parte do cérebro (ou o outro lado, simplesmente). Música, dança, pintura, são coisas que exigem concentração e esforço; ao nos dedicarmos a elas, acabamos nos desligando dos problemas 'normais', descansando as áreas do cérebro envolvidas com eles; quando voltamos, conseguimos ter uma melhor perspectiva e ser mais eficazes.
O único problema é o título deste texto: a amante às vezes é tão exigente que começa a pedir o tempo que precisamos dedicar à 'patroa', e então temos de escolher. Sei que parece canalhice, mas fazer o quê... Depois de dois anos, vou precisar parar uma atividade artística que me dá muito prazer, mas que não vale a pena fazer mal feita. A separação é difícil, amarga mesmo, mas não tem jeito. É como na canção do Vanzolini:

Cheguei na boca da noite,
saí de madrugada.
Eu não disse que ficava
nem você perguntou nada.
Na hora que eu ia indo,
dormia tão descansada.
Respiração tão macia...
Morena, nem parecia
que a fronha estava molhada.
...
O vento vai para onde quer,
a água corre pro mar.
Nuvem alta em mão de vento
é o jeito da água voltar.
Morena se acaso um dia
tempestade te apanhar,
não foge da ventania,
da chuva que rodopia,
sou eu mesmo a te abraçar!

segunda-feira, 22 de março de 2010

Blues na conferência

No fundo, eu estava torcendo para o Vitor me 'forçar' a participar do show de talentos. Ele me ouvira tocar harmônica um ano antes e achava que eu devia participar. Sou perfeccionista e há muito tempo que não pratico a gaita com frequência, mas adoro tocar, e a oportunidade era deliciosa. Mas tocar o quê? Estávamos no penúltimo dia de nossa conferência de vendas, a cabeça cheia de livros, cursos e estratégias, e eu tinha duas horas para me preparar... Lembrei das velhas dicas para amadores ("escolha alguma coisa que o público conheça") e comecei a tirar algumas músicas de filmes, mas achei que não ficaria perfeito; bolei um blues lento, mas sempre esbarrava na falta de acompanhamento... Meia hora antes de começar, fui 'assuntar' com o Alexandre e seu enorme repertório em iPhone, mas não havia nada que eu conhecesse e pudesse montar em tão pouco tempo. Bem que eu havia pensado no Igor, que canta e toca violão muito bem, mas sabia que ele também ia se apresentar...
É assim que complicamos as coisas quando não nos comunicamos: no fim, o Igor também queria um 'tempero' para seu Beatles, e fazer um merger de nossas apresentações foi a solução perfeita! Ainda bem que sempre tenho mais de uma gaita comigo, então a afinação bateu, e com dois minutos de ensaio estávamos prontos para enfrentar a platéia! Nosso programa duplo começou com Igor tocando e cantando Love me do, comigo fazendo a gaitinha do Lennon, mas depois ele emendou em um blues rápido, que me permitiu solar. Depois de um lick mais longo, devolvi a palavra para o violão do Igor, mas ele logo rebateu para mim e finalizamos nossa apresentação como uma jam. Grande Igor! Valeu!!!

sábado, 20 de março de 2010

Militares na 23 de Maio

Certa vez, a caminho do trabalho, avistei soldados postados com seus rifles por todas as principais vias públicas. A sensação foi no mínimo curiosa. Embora soubesse se tratar de segurança adicional devido à Unctad, não gostei de ver aqueles garotos semi-imberbes fortemente armados, à espera de um inimigo indefinido. Não vivi realmente o regime militar, embora tenha nascido no ano do AI-5. Quando comecei a ter um pouco de consciência das coisas, já era a campanha das diretas, era a Ditadura cedendo lugar a seus filhotes. Hoje, seus opositores e vítimas estão no poder, celebrando a amizade com algumas das piores ditaduras do mundo.
Sempre vale lembrar a única revolução socialista pacífica que deu certo, a dos Cravos em Portugal. O filme Capitães de abril, da atriz tornada diretora Maria de Medeiros, mostra o dia sobre o qual ninguém de minha geração aprendeu na escola e que Chico Buarque cantava em "Tanto Mar": "Foi bonita a festa, pá./ Fiquei contente/ e inda guardo, renitente/ um velho cravo para mim". O exército não fez o que mais sabe, e sem um único tiro fez sua festa. Mas murchou e a semente esquecida hoje é soja transgênica. Apanhada entre a ânsia de lutar contra o imperialismo ianque e a necessidade de adotar seus métodos, sofrendo sob as sandálias da bajulada Gigante Vermelha, a esquerda pós-Lula tenta recolher o que restou das utopias socialistas que o selvagem Che vislumbrou sobre sua motocicleta.

domingo, 14 de março de 2010

Escrever só é bom para ler depois

Já li muitos escritores dizendo que adoram escrever, que o processo é o que mais lhes dá prazer e que dificilmente releem seus textos. Entendo isso; há pessoas que gostam de jogos, de resolver enigmas, e escrever às vezes é isso: um grande quebra-cabeças. Vide Anne Sexton, que criava estruturas e regras mais e mais difíceis para a construção de seus poemas; vide Chico Buarque com seus palíndromos insones. Eu, o que eu gosto é ler depois. Não fosse pelo prazer de ler, não sei se me entregaria ao árduo esforço de ordenar palavras elusivas, comandar frases rebeldes e moldar significados. As histórias que escrevi até hoje são as que queria ler e não existiam e as ideias que registro aqui são as que gostaria de ler e de ver com mais frequência. Meu prazer é o texto que funciona, que respira ante meus olhos. O processo de construção é árduo, pois interrompe e adia minha leitura; a revisão é obsessiva na medida em que os erros, os trechos truncados, toldam a visão do que interessa, turvam o texto que quero transparente. Isso não quer dizer que esteja escrevendo para mim mesmo. Escrevo como quem compra para um amigo o presente que gostaria de ganhar. A diferença é que, espertamente, sou o primeiro a desfrutar.

quarta-feira, 10 de março de 2010

O que você é?

Em resposta a esta pergunta, respondi: "sou editor". O treinador, que já esperava pela resposta, devolveu: "perguntei o que você é, não o que você faz". Outras pessoas responderiam algo como 'sou corintiano', 'sou brasileiro', 'sou pai da Mariana e do Cauê', mas ainda não era isso o que o treinador queria, e sim que buscássemos uma definição mais essencial do que somos. Cada vida encerra uma ou várias grandes jornadas, os caminhos de formação que nos levam a ser o que somos. Para alguns, esse caminho os leva na direção da construção de uma família, e é assim que eles se definem; na direção de uma carreira, e é assim que se definem; na direção da arte, e é assim que se definem.
Meus caminhos de autoconstrução me levaram a várias definições e ainda vão me levar a outras, mas não tem jeito, é o caminho profissional que sempre vem à mente primeiro. Após uma jornada de 20 anos, aprendendo, descobrindo, desafiando-me, minha profissão é um projeto importante demais para ser ignorado. A maior parte do dia (e da noite) cogito como editor, ergo sum editor. Com prazer, porque amo o que faço. Mas fico feliz de lembrar que esse é, e sempre vai ser, o segundo projeto. O primeiro é a construção da personalidade que me apoia, de uma filosofia de vida que me orienta e de uma teia de influências e de exemplos que constitui o arcabouço de minha maneira de ser. Só com o tempo e a convivência com meu pai pude compreender o que é a verdadeira integridade e honestidade; só acumulando os comentários de minha mãe sobre tudo pude ter uma pista do que é verdadeiramente importante; só testemunhando as ações de minha irmã pude aprender a verdadeira generosidade. O hinduismo tem um belo conceito chamado 'Teia de Indra". Segundo ele, o universo é uma teia em que cada nó é uma jóia polida e resplandecente que reflete todas as demais. O brilho de cada jóia afeta as outras e é novamente afetado por elas, e assim infinitamente. Cada um de nós é uma pequena jóia e em nosso brilho se encerra o de todos os que nos tocaram, e através de nós seu brilho nunca vai se apagar.
Para os treinadores de RH que encontrar, vou continuar dizendo que sou um editor (ou a definição que melhor expressar minha carreira daqui a cinco, dez ou 20 anos), mas no meu íntimo a definição é mais longa, porém mais simples e completa ao mesmo tempo: sou alguém que tenta estar à altura de refletir o brilho dos que eu amo.

quinta-feira, 4 de março de 2010

São Carlos

Ele ficava sempre na esquina da Catedral, um breve oásis antes da ladeira mais íngreme de meu caminho pela avenida principal de São Carlos. Sempre simpático mas nunca sorrindo, vendia amendoim ou coco caramelado cortado em pequenos cubinhos, que embalava conscienciosamente em saquinhos plásticos longos e delgados. Eu nem sempre tinha os trocados necessários, mas sempre reduzia o passo, desejoso... O cheiro que me despertou essas lembranças vem de uma esquina apinhada, onde a fuligem dá aos doces expostos o sabor peculiar da comida de rua em São Paulo. "Quem vem de um outro sonho feliz de cidade" aprende a amar essa balbúrdia de buzinas e possibilidades. Na cidade onde cresci, carregando meu violão avenida acima, já pensava em vir para cá, e não via grande ameaça nesta terra que meus irmãos já haviam desbravado. Com a inocência arrogante de meus 18 anos recém-completos, achava que a cidade seria uma passagem, uma etapa a cumprir entre o estudante e o profissional; ela não reclamou, simplesmente me acolheu e começou seu insidioso trabalho de me transformar em alguém na vida. Caminhando hoje pelas ruas de São Carlos, paro em uma praça muito querida, vigiada pela fachada austera de meu antigo grupo escolar, e me divirto vendo o tráfego em mão única e os parquímetros sofisticados. Orgulho-me dessa recém-assumida vocação tecnológica, celeiro de empresas e talentos, mas sei que essa cidade que não é mais a minha. Minha cidade são as lembranças tingidas de azul de tardes preguiçosas, de jaboticabeira e gibis, de tarefas de gente grande e mimo de criança. Mas a cada camada de lembranças relevantes cuidadosamente escolhidas sobrepõem-se novas escolhas, outros lugares, outras experiências, fundidos em uma perspectiva toda minha. Apegando-me ao que há de melhor em cada cidade, escolho ser um estrangeiro nas duas; escolhendo o que cada memória me traz de melhor, abro minha mente para o mundo.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Lembrando Dom Gambini

Era meu primeiro emprego remunerado e 'na área'. Eu e o Carlos tínhamos funções que iam de vender anúncios a escrever matérias, mas era uma revista, oras! O Carlos, que falava inglês, era o repórter oficial e eu, com minha produção gráfica de ESPM, comecei a trabalhar no projeto gráfico (contar laudas, fazer leiaute, moderníssimo!). Gerenciando esses dois grandes futuros profissionais do setor estava Raul Gambini, especialista na indústria gráfica e dono dos dedos mais rápidos que já vi operando uma IBM elétrica. Durante nossos almoços no boteco da esquina (que eu insistia em chamar de 'padaria'), ele apontava para as toalhas de papel, os móbiles anunciando drops, biscoitos ou cerveja, e mostrava que praticamente tudo o que víamos era impresso, obra da indústria gráfica, e falava de quadricromia, registro, pantone, couché, blanquetas, todo um mundo que não desconfiava existir, criando mais um apaixonado pela área -- se não tanto pela gráfica, pela editorial. Aprendi com esse meu primeiro chefe a ser gentil com todo mundo, sem deixar de dizer o que precisa ser dito; a ter amor pelo trabalho, e a buscar sempre o máximo de qualidade em tudo. Mas a maior lição, que ele ensinou como brincadeira, tenho sempre em mente ao escrever e ao pensar qualquer produto de educação: sempre pense em seu leitor/ouvinte/espectador/aprendiz. Para o 'foca' sentado à sua frente, dizia: "você tem que escrever para que qualquer burro entenda..." E, com um sorriso maroto, emendava: "Entendeu?"

segunda-feira, 1 de março de 2010

Pôr do sol

Viagens a trabalho são acidentes de percurso. Embora necessárias, significam acúmulo de trabalho, horas de espera em aeroportos, taxis, hotéis. Tendo que estar em Ribeirão Preto na terça pela manhã, preferi ir de carro, apesar da chuva constante, porque assim podia visitar meu irmão. Ia pela estrada distraído, pensando nos compromissos do dia seguinte, quando de repente o sol, diretamente em frente, me ofuscou! Continuei olhando para a pista, com os colhos semicerrados focados nas faixas e nos pneus do carro à minha frente, até que a estrada fez uma curva à direita. Dei uma olhada rancorosa para o sol poente, mas ele me respondeu com uma pintura que parecia feita a quatro mãos por Monet e Van Gogh! As nuvens de chuva até então cinzentas agora se esgarçavam em pinceladas azuis, esverdeadas e em todos os matizes de laranja e vermelho, explodindo em ouro derretido ao redor do astro que até há puco me incomodava. Eu o agradeci por chamar minha atenção e aproveitei a próxima meia hora de minha viagem com um sorriso de puro prazer estético.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O Zen e a arte de sobreviver no trânsito

O problema do conforto é nos deixar mal acostumados, dependentes dele, mas ainda assim parece que nunca estamos satisfeitos... Quando eu andava de ônibus todos os dias, tinha de acordar mais cedo e os dias de muito calor ou de chuva eram bem desconfortáveis, mas conseguia ler um livro por semana e ainda conseguia tirar um cochilo para descansar do trabalho antes de ir para a faculdade. Quando comecei a andar de carro, logo percebi algumas vantagens, como poder fazer mais de uma reunião ao longo do dia e ainda conseguir visitar amigos, mas logo começou a tensão com o trânsito... Todos os dias me desgastava com isso até que um autor me deu a dica: "o trânsito é ótimo", disse um dia, para interlocutores estarrecidos, "pois quando saio da agência estou normalmente estressado e irritado. Se eu chegasse em casa imediatamente, com certeza iria me irritar com alguma coisa, brigar com os filhos ou discutir com a mulher. Mas com o trânsito tenho no mínimo uma hora para ouvir meus discos e relaxar, e quando estou em casa posso aproveitar a família." Claro que não acreditei nele na hora, mas depois fiz o que ele sugeriu e minha vida melhorou muito! É fácil a gente reclamar do que está vivendo, e às vezes é difícil encontrar alguma coisa de bom em uma situação (com tantas tempestates que enfrentamos diariamente), mas sempre é bom lembrar daquele conto zen em que uma pessoa se pendura em um precipício, para fugir de um tigre e, prestes a cair, vê um morango. Ele come o morango e murmura: "que delícia".

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Leituras de infância

Filtrados pelas lentes da nostalgia, os fatos do passado muitas vezes se distorcem até formar uma realidade alternativa. O mesmo acontece com as memórias do que lemos, ouvimos ou assistimos. Não raro nos decepcionamos ao rever um filme de que tanto gostávamos, uma música que repetíamos sem parar ou um livro que nos absorveu irremediavelmente. Em outros casos, apreciamos com uma nova profundidade a mesma obra, aumentando ainda mais nossa admiração. Mas há casos em que somos incapazes de analisar racionalmente, pelas associações com o passado e, porque não dizer, por amor. Se alguém me perguntar se Rick Wakeman era um bom compositor, não saberei dizer, pois não quero aplicar a ele meus conhecimentos musicais; meu amor por sua música ficou tão associado a momentos de minha infância que ele não pode ser questionado nem por mim mesmo. Outra obra que surte esse efeito em mim são os livros de Edgar Rice Burroughs, especialmente os de Tarzan. Comecei a lê-los aos sete anos, e antes dos 12 já havia relido meus favoritos pelo menos cinco vezes. Como ficção popular, os livros de Burroughs sempre estiveram acima da média, nas nunca almejaram ser mais que isso. A maioria dos personagens coadjuvantes é unidimensional, e a lógica dos acontecimentos nem sempre parece natural, ficando por vezes visíveis os fios do autor. Mas esses clássicos juvenis exsudam um vigor narrativo e uma criatividade que superam o kitsch de alguns de seus parágrafos. Mesclando o esforço para conferir realismo a sua descrição da selva e de seus habitantes a concepções fantasiosas sobre a inteligência dos animais, Burroughs cria um universo fantástico que não deve nada aos dos atuais bruxos e vampiros, tão em voga. Sendo o autor fruto de sua época, alguns preconceitos se filtram em seus comentários, mas uma crítica constante à arrogância das classes dominantes e personagens fortes de todas as raças e credos evidencia sua preocupação democrática subjacente. Seus personagens demonstram uma honra cavalheiresca por vezes antiquada, mas na selva, onde a vida não vale mais que uma refeição, a fina camada de verniz dá lugar à lei do mais forte. Em meio à diversão das inúmeras reviravoltas e surpresas, um senso de ética e responsabilidade é estabelecido, mas não como norma, e sim como a escolha de quem tem consciência de seu poder, mas escolhe ser humilde e gentil. Não é pouca coisa...

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Fun Home

A autobiografia é com frequência um subgênero literário de (semi)celebridades em busca de autopromoção. No meio dos quadrinhos, no entanto, está se tornando um gênero dos mais sérios e artisticamente avançados. Harvey Pekar e Marji Satrapi são dois exemplos que chegaram ao (relativamente) grande público por meio do cinema, com American Splendor e Persépolis, mas muitos outros quadrinistas têm usado o meio com uma profundidade e honestidade incomuns em outros meios. Fun Home, de Alison Brechdel, é um dos melhores livros que já li. Acontece de ter sido escrito em quadrinhos, e ela sabe como usar o meio. Sem uma gota de kitsch, ela mescla habilmente seu texto ácido a imagens expressivas e econômicas; sangrando sua história e espanando seus demônios, Alison revela com humor e pathos seu relacionamento com o pai e nos expõe a miríade de sentimentos desconexos e frequentemente contraditórios que ora os conectam e ora os afastam. Fun Home é o romance que muitos romances gostariam de ser, o filme que muitos filmes gostariam de ser, mas acontece de ser uma história em quadrinhos. E que história!

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Corra, homo sapiens, corra!

Gosto de ler as colunas do Drauzio Varella principalmente por seu equilíbrio na defesa de uma manutenção saudável de nosso organismo. Ele é um bom mestre, no sentido de que sabe contar as histórias certas para garantir que seus argumentos sejam lembrados. Para nos lembrar da importância dos exercícios físicos, conta como os primeiros homo sapiens precisava correr por horas e horas até encontrar algum alimento, para então se empanturrar e sentar para dormir (de modo a preservar o alimento em forma de gordura), para então voltar a correr. O que ele raramente menciona é a sensação de bem-estar que músculos exercitados nos dão. Não é só o bem-estar que as endorfinas promovem depois de 20 minutos de exercícios, mas a sensação de sentir seu corpo respondendo com energia aos menores estímulos. Depois de forçar sem exagero os músculos, podemos nos sentir momentaneamente cansados, mas no dia seguinte nos fica uma sensação de poder, de vitalidade, que nos ajuda até psicologicamente a lidar com os problemas do dia e da noite. Gostaria de me lembrar mais vezes disso...

Pippi e Kalle

Stieg Larson não se cansa de brincar com os mais famosos personagens infantis escandinavos em sua série de romances policiais, dando a Mike "Kalle" Blomkvist uma personalidade de menino detetive (porque inocente e às vezes ingênuo, mas decidido) e superpoderes comparáveis aos de Pippi meia-Longa à fisicamente frágil Salander. Estou espaçando a leitura dos três romances não só para curtir por mais tempo uma série definitivamente encerrada com a morte prematura do autor, mas também porque são livros exigentes. Não me lembro de ter lido um livro tão lento e ao mesmo tempo tão difícil de largar. O tempo de Larson é muito próprio; neles as coisas demoram uma eternidade para acontecer e, quando acontecem, é tudo repentino, como o soltar da flecha na arqueria zen. É essa nítida ameaça de tempestade durante uma longa, interminável bonança, que torna o segundo livro tão angustiante e instigante. Isso e os personagens mais bem definidos da literatura policial! Agora quero ler mais uns três livros antes de iniciar o último da série, mas vou ficar pensando no que terá acontecido com a Sally!!

Porque é para ser boa

Uma das minhas comédias favoritas é um filme em que o Rock Hudson é hipocondríaco e se convence (e a seu melhor amigo, Tony Randall) de que vai morrer, e começa a encarar o mundo de outra maneira, valorizando as pequenas coisas, como a casca de uma árvore. O pobre Tony, emocionado, fica contemplando a árvore, o céu, o chão... Mas a gente precisa achar que vai morrer para valorizar o que está à nossa volta? Não é melhor olhar hoje para o céu azul, que mesmo emoldurado por prédios continua tão lindo como na praia? Se ilhados na chuva, não podemos aproveitar para sentir a força da água, que tanto nos emociona em uma cachoeira? Não se trata de usar lentes cor-de-rosa, mas é triste que em uma cidade estranha admiremos coisas às vezes parecidíssimas com o que temos em casa, quando aqui não prestamos atenção! Resolvi escrever este blog para chamar a atenção para as coisas à nossa volta que esquecemos de olhar, e para coisas que chamaram minha atenção e que também poderiam lhe interessar.