quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Deadline: deadly or dead

Quando garoto eu era um notório procrastinador. "Não procrastines o que é de feitura hodierna" era literalmente "colóquio flácido para acalentar bovinos". E tinha consciência disso, pois durante todo o cursinho tive pregado na parede do armário uma tira do Fernando Gonzalez que dizia algo como "o vestibular está aí... É preciso muita coragem... Para ler gibi com esse clima!"
O tempo passou e me tornei um profissional responsável e respeitável, e meu relacionamento com os prazos se tornou mais 'administrado'. Tudo tem prazo, todos são curtos, e sempre há acidentes de percurso, mas para isso criamos planejamentos, processos, métodos e planos de contingência. Mas se alguém me propõe um algo mais a fazer, em cima de todos esses prazos -- principalmente se é algo criativo, que me desafia pessoalmente --, então a diversão começa.

Poucas coisas são mais estimulantes que a luta de vida ou morte contra um prazo. Você estuda o adversário, simula mentalmente suas estratégias e táticas, prepara-se com todas as informações e rumina-as. Então, como um samurai, começa a circular o inimigo, em uma espiral que vai deixando-o cada vez mais próximo. O prazo sabe que a vantagem está com ele, que só precisa esperar: por congestionamentos, por bloqueios mentais, pela queda da conexão. Mas a disciplina e a experiência vencem o desafio e, de um só golpe, a entrega é feita e o deadline jaz derrotado.
Com a comemoração contida e respeitosa de campeão de snooker, você aceita o convite tácito para a próxima contenda.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Pessoa cruel

"Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!"

"Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz-
Ter por vida a sepultura."

Fernando Pessoa

sábado, 21 de agosto de 2010

Gould e McLaren

Sempre fui apaixonado por música e animação. Esta 'peça' de Norman McLaren, presente no longa 32 curtas sobre Glenn Gould, de François Girard soma as duas coisas de maneira maravilhosa. McLaren ficou conhecido por trabalhar diretamente sobre a película de cinema, sem usar câmeras. Vale a pena assistir ao filme inteiro de Girard e também buscar outras obras de McLaren. Elas são uma 'viagem', bro!

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Mais vale um sorvete na mão

"Deixa eu ir junto", gemia o menino.
"Você não pode ir, a gente logo volta, fica com seu irmão".
"Não, me leva", manhava ele.
O pai começou a calcular o tempo que ia demorar para convencer o menino. Se tivesse que endurecer ia ser pior, pois aí ia ter que dar sermão, deixar de castigo, e iam perder a hora do mesmo jeito.
"Olha, você pode comprar um sorvete. E logo vai começar a Disneylândia! Se você for, vai perder!"
Parou de miar por dois segundos. Disneylândia era bacana, tinha o Pato Donald.
"Dá dois sorvetes, então?" gemeu.
"Vamos, então", disse a mãe, prática. "Você pega os sorvetes e volta para casa."
A sorveteria, recém-inaugurada, funcionava em uma saleta a dez passos de casa, mas ele não podia ir lá sozinho. Precisava usar as mãos para subir os dois degraus desmesuradamente altos.
"Um de morango e um de chocolate", sentenciou. Na saída, já não tinha olhos para mais nada. Desceu os dois degraus pulando com os pés separados, para não perder o equilíbrio, e foi andando para casa, lambendo ora a casquinha da esquerda, ora a da direita, sob o olhar divertido dos pais, que se apressavam para seu compromisso.
"Oba, me dá um!" disse o irmão, assim que o viu.
"É meu, a mãe comprou pra mim! E é pra ligar na Disneylândia!"
"Ah, só uma lambidinha, depois eu devolvo!"
"Tá, mas liga a Disneylândia!"
Sentou na sofá, absorto com o Prof. Ludovico, que tinha um sotaque engraçado e falava coisas que ele não entendia.
"Vamos trocar, agora? Deixa eu experimentar esse."
Não havia se dado conta que o irmão tinha dez anos a mais de boca, e o sorvete que voltou era quase só casquinha.
"Você comeu tudo!" reclamou, mas não queria perder o desenho para brigar.
Mas o prof. Ludovico já se despedia e a música de encerramento começava. Olhou para o lado e já não viu o irmão.
Sentiu-se sozinho, injustiçado, mas não havia ninguém para quem chorar. Desligou a televisão e foi folhear seus livros.

Presente imerecido

J.M.Coetzee diz em seu Diário de um ano ruim que uma prova de que o mundo na verdade é um bom lugar, e que talvez até exista um Deus misericordioso que olhe por nós, é que cada pessoa que nasce recebe de herança, sem que tenha feito nada para merecer isso, a música de Johann Sebastian Bach.
Às vezes penso que se por alguma catástrofe todas as músicas e partituras e gravações fossem perdidas, uma irmandade de músicos se reuniria para tentar recriar, conforme indicações dos que as conheciam, pelo menos algumas obras de Bach, para que as gerações futuras tivessem alguma esperança. Sim, como em Fahrenheit 451, mas pense bem: pode-se viver sem Ulisses ou Anna Karenina, mas não é justo se viver sem Bach!
Clique na "animação musical" abaixo e faça sua vida melhor!


Causo causal

Seu Latércio levantou devagar do degrau onde tomava a fresca, para atender o telefone que gritava na sala. "Já vai, já, vai", resmungou para o aparelho que não o ouvia.
"Eu!", gritou no bocal. A voz do outro lado, ainda se acostumando às manias do caseiro, soou irritada.
"Oi, Latércio, tá tudo bem por aí?"
"Fora a falta d'água, tá tudo bem."
"Ué, faltando água por quê? O poço secou?"
"Não, o poço tá cheio, só não tem como usar a bomba."
"Quebrou a bomba?"
"Quebrou não, não tem é luz pra ligar."
"Acabou a força? Tem que ligar para a Companhia e avisar."
"Avisei, mas sem poste não dá pra ligar não."
"Ué, e o que aconteceu com o poste?"
"Queimou, com o fogo que pegou no mangueiro."
"Que é isso, homem? Como pode ter pego fogo no mangueiro?"
"Ué, pegou da casa."
"Minha casa pegou fogo, Latércio? E é assim que você me diz? E como é que começou o fogo?"
"Diz que foi da vela do velório."
"Como assim? Velório de quem?"
"Da sua senhora, Deus a tenha."
....
"Mas fora isso está tudo bem!"

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Palimpsesto

Em vão descamo o pergaminho quase roto
e cubro cada milímetro com novas histórias,
pinceladas a óleo sobre uma aquarela.
O passado é como a umidade sob a escada,
penetra as camadas e vem tingir de memória
minha realidade de papel crepom.