quarta-feira, 31 de março de 2010

Livro digital 1

Fiquei assustado com um comentário durante o congresso do livro digital: "se o novo leitor, nativo digital, é mais desatento e menos interessado e não tem hábito de leitura, então o livro digital deveria ser uma versão resumida e menos profunda que o livro físico?" Ora, não podemos perder de vista duas coisas: primeiro, que o nativo digital não é burro; segundo, que livro é livro em qualquer formato. Por mais que possamos agregar recursos, enhance o produto, o livro é um conteúdo textual com determinadas características que não mudam, qualquer que seja seu formato ou o meio em que é disponibilizado. Os leitores 'nativos digitais' que lêem livros querem ler livros, não os resumos deles (salvo quando obrigados pela escola; atire a primeira pedra quem nunca leu um resumo de livro para o vestibular). Temos de lembrar que o texto escrito é um produto, e sua eventual versão digital é o mesmo produto! Caso seja adaptado para um roteiro de vídeo (e o próprio vídeo), para uma história em quadrinhos ou para uma versão resumida, então estamos falando de produtos diferentes, com objetivos diferentes... Cabe a nós editores, professores e pais estimular o hábito de leitura, jamais substituí-lo pela fruição de outros formatos, por melhores que estes sejam, por um motivo simples: a leitura é uma atividade insubstituível em sua capacidade de desenvolver a capacidade cognitiva do indivíduo. Uma pessoa que não lê está menos preparada para a vida e para o trabalho e não conseguirá ser um cidadão completo. As exceções, honrosas ou não, só confirmam a regra...

"A arte é uma amante ciumenta"

É o que dizia nosso regente, Marco Antonio da Silva Ramos, nos ensaios que alternavam piadas e alta concentração. Sabia que todos trabalhávamos em outras coisas e que dedicávamos à música uma pequena parcea de nossas horas, e isso nem sempre era suficiente. "O coro é amador mas o público não tem nada a ver com isso", dizia também, instigando-nos a dar o máximo pela qualidade daquele nosso 'segundo trabalho'. Sempre defendo esse conceito de 'segundo trabalho' para uma manifestação artística, se não trabalhamos com arte. Não é o que fazemos para viver, mas é o que vivemos para fazer!
Não gosto do conceito de hobby, pois remete a algo que fazemos sem maiores compromissos ou, pior, ao que realmente gostamos de fazer, mas a que não podemos dedicar tempo pois "temos de trabalhar". Acho que devemos sempre encontrar prazer em nosso trabalho, pois é a ele que dedicamos a maior parte do dia. Mas de tanto nos esforçarmos no trabalho oficial acabamos nos cansando e perdendo a perspectiva e a capacidade de resolver problemas (que é o que mais fazemos). A solução é ter outra atividade igualmente demandante, mas que nos exija outra parte do cérebro (ou o outro lado, simplesmente). Música, dança, pintura, são coisas que exigem concentração e esforço; ao nos dedicarmos a elas, acabamos nos desligando dos problemas 'normais', descansando as áreas do cérebro envolvidas com eles; quando voltamos, conseguimos ter uma melhor perspectiva e ser mais eficazes.
O único problema é o título deste texto: a amante às vezes é tão exigente que começa a pedir o tempo que precisamos dedicar à 'patroa', e então temos de escolher. Sei que parece canalhice, mas fazer o quê... Depois de dois anos, vou precisar parar uma atividade artística que me dá muito prazer, mas que não vale a pena fazer mal feita. A separação é difícil, amarga mesmo, mas não tem jeito. É como na canção do Vanzolini:

Cheguei na boca da noite,
saí de madrugada.
Eu não disse que ficava
nem você perguntou nada.
Na hora que eu ia indo,
dormia tão descansada.
Respiração tão macia...
Morena, nem parecia
que a fronha estava molhada.
...
O vento vai para onde quer,
a água corre pro mar.
Nuvem alta em mão de vento
é o jeito da água voltar.
Morena se acaso um dia
tempestade te apanhar,
não foge da ventania,
da chuva que rodopia,
sou eu mesmo a te abraçar!

segunda-feira, 22 de março de 2010

Blues na conferência

No fundo, eu estava torcendo para o Vitor me 'forçar' a participar do show de talentos. Ele me ouvira tocar harmônica um ano antes e achava que eu devia participar. Sou perfeccionista e há muito tempo que não pratico a gaita com frequência, mas adoro tocar, e a oportunidade era deliciosa. Mas tocar o quê? Estávamos no penúltimo dia de nossa conferência de vendas, a cabeça cheia de livros, cursos e estratégias, e eu tinha duas horas para me preparar... Lembrei das velhas dicas para amadores ("escolha alguma coisa que o público conheça") e comecei a tirar algumas músicas de filmes, mas achei que não ficaria perfeito; bolei um blues lento, mas sempre esbarrava na falta de acompanhamento... Meia hora antes de começar, fui 'assuntar' com o Alexandre e seu enorme repertório em iPhone, mas não havia nada que eu conhecesse e pudesse montar em tão pouco tempo. Bem que eu havia pensado no Igor, que canta e toca violão muito bem, mas sabia que ele também ia se apresentar...
É assim que complicamos as coisas quando não nos comunicamos: no fim, o Igor também queria um 'tempero' para seu Beatles, e fazer um merger de nossas apresentações foi a solução perfeita! Ainda bem que sempre tenho mais de uma gaita comigo, então a afinação bateu, e com dois minutos de ensaio estávamos prontos para enfrentar a platéia! Nosso programa duplo começou com Igor tocando e cantando Love me do, comigo fazendo a gaitinha do Lennon, mas depois ele emendou em um blues rápido, que me permitiu solar. Depois de um lick mais longo, devolvi a palavra para o violão do Igor, mas ele logo rebateu para mim e finalizamos nossa apresentação como uma jam. Grande Igor! Valeu!!!

sábado, 20 de março de 2010

Militares na 23 de Maio

Certa vez, a caminho do trabalho, avistei soldados postados com seus rifles por todas as principais vias públicas. A sensação foi no mínimo curiosa. Embora soubesse se tratar de segurança adicional devido à Unctad, não gostei de ver aqueles garotos semi-imberbes fortemente armados, à espera de um inimigo indefinido. Não vivi realmente o regime militar, embora tenha nascido no ano do AI-5. Quando comecei a ter um pouco de consciência das coisas, já era a campanha das diretas, era a Ditadura cedendo lugar a seus filhotes. Hoje, seus opositores e vítimas estão no poder, celebrando a amizade com algumas das piores ditaduras do mundo.
Sempre vale lembrar a única revolução socialista pacífica que deu certo, a dos Cravos em Portugal. O filme Capitães de abril, da atriz tornada diretora Maria de Medeiros, mostra o dia sobre o qual ninguém de minha geração aprendeu na escola e que Chico Buarque cantava em "Tanto Mar": "Foi bonita a festa, pá./ Fiquei contente/ e inda guardo, renitente/ um velho cravo para mim". O exército não fez o que mais sabe, e sem um único tiro fez sua festa. Mas murchou e a semente esquecida hoje é soja transgênica. Apanhada entre a ânsia de lutar contra o imperialismo ianque e a necessidade de adotar seus métodos, sofrendo sob as sandálias da bajulada Gigante Vermelha, a esquerda pós-Lula tenta recolher o que restou das utopias socialistas que o selvagem Che vislumbrou sobre sua motocicleta.

domingo, 14 de março de 2010

Escrever só é bom para ler depois

Já li muitos escritores dizendo que adoram escrever, que o processo é o que mais lhes dá prazer e que dificilmente releem seus textos. Entendo isso; há pessoas que gostam de jogos, de resolver enigmas, e escrever às vezes é isso: um grande quebra-cabeças. Vide Anne Sexton, que criava estruturas e regras mais e mais difíceis para a construção de seus poemas; vide Chico Buarque com seus palíndromos insones. Eu, o que eu gosto é ler depois. Não fosse pelo prazer de ler, não sei se me entregaria ao árduo esforço de ordenar palavras elusivas, comandar frases rebeldes e moldar significados. As histórias que escrevi até hoje são as que queria ler e não existiam e as ideias que registro aqui são as que gostaria de ler e de ver com mais frequência. Meu prazer é o texto que funciona, que respira ante meus olhos. O processo de construção é árduo, pois interrompe e adia minha leitura; a revisão é obsessiva na medida em que os erros, os trechos truncados, toldam a visão do que interessa, turvam o texto que quero transparente. Isso não quer dizer que esteja escrevendo para mim mesmo. Escrevo como quem compra para um amigo o presente que gostaria de ganhar. A diferença é que, espertamente, sou o primeiro a desfrutar.

quarta-feira, 10 de março de 2010

O que você é?

Em resposta a esta pergunta, respondi: "sou editor". O treinador, que já esperava pela resposta, devolveu: "perguntei o que você é, não o que você faz". Outras pessoas responderiam algo como 'sou corintiano', 'sou brasileiro', 'sou pai da Mariana e do Cauê', mas ainda não era isso o que o treinador queria, e sim que buscássemos uma definição mais essencial do que somos. Cada vida encerra uma ou várias grandes jornadas, os caminhos de formação que nos levam a ser o que somos. Para alguns, esse caminho os leva na direção da construção de uma família, e é assim que eles se definem; na direção de uma carreira, e é assim que se definem; na direção da arte, e é assim que se definem.
Meus caminhos de autoconstrução me levaram a várias definições e ainda vão me levar a outras, mas não tem jeito, é o caminho profissional que sempre vem à mente primeiro. Após uma jornada de 20 anos, aprendendo, descobrindo, desafiando-me, minha profissão é um projeto importante demais para ser ignorado. A maior parte do dia (e da noite) cogito como editor, ergo sum editor. Com prazer, porque amo o que faço. Mas fico feliz de lembrar que esse é, e sempre vai ser, o segundo projeto. O primeiro é a construção da personalidade que me apoia, de uma filosofia de vida que me orienta e de uma teia de influências e de exemplos que constitui o arcabouço de minha maneira de ser. Só com o tempo e a convivência com meu pai pude compreender o que é a verdadeira integridade e honestidade; só acumulando os comentários de minha mãe sobre tudo pude ter uma pista do que é verdadeiramente importante; só testemunhando as ações de minha irmã pude aprender a verdadeira generosidade. O hinduismo tem um belo conceito chamado 'Teia de Indra". Segundo ele, o universo é uma teia em que cada nó é uma jóia polida e resplandecente que reflete todas as demais. O brilho de cada jóia afeta as outras e é novamente afetado por elas, e assim infinitamente. Cada um de nós é uma pequena jóia e em nosso brilho se encerra o de todos os que nos tocaram, e através de nós seu brilho nunca vai se apagar.
Para os treinadores de RH que encontrar, vou continuar dizendo que sou um editor (ou a definição que melhor expressar minha carreira daqui a cinco, dez ou 20 anos), mas no meu íntimo a definição é mais longa, porém mais simples e completa ao mesmo tempo: sou alguém que tenta estar à altura de refletir o brilho dos que eu amo.

quinta-feira, 4 de março de 2010

São Carlos

Ele ficava sempre na esquina da Catedral, um breve oásis antes da ladeira mais íngreme de meu caminho pela avenida principal de São Carlos. Sempre simpático mas nunca sorrindo, vendia amendoim ou coco caramelado cortado em pequenos cubinhos, que embalava conscienciosamente em saquinhos plásticos longos e delgados. Eu nem sempre tinha os trocados necessários, mas sempre reduzia o passo, desejoso... O cheiro que me despertou essas lembranças vem de uma esquina apinhada, onde a fuligem dá aos doces expostos o sabor peculiar da comida de rua em São Paulo. "Quem vem de um outro sonho feliz de cidade" aprende a amar essa balbúrdia de buzinas e possibilidades. Na cidade onde cresci, carregando meu violão avenida acima, já pensava em vir para cá, e não via grande ameaça nesta terra que meus irmãos já haviam desbravado. Com a inocência arrogante de meus 18 anos recém-completos, achava que a cidade seria uma passagem, uma etapa a cumprir entre o estudante e o profissional; ela não reclamou, simplesmente me acolheu e começou seu insidioso trabalho de me transformar em alguém na vida. Caminhando hoje pelas ruas de São Carlos, paro em uma praça muito querida, vigiada pela fachada austera de meu antigo grupo escolar, e me divirto vendo o tráfego em mão única e os parquímetros sofisticados. Orgulho-me dessa recém-assumida vocação tecnológica, celeiro de empresas e talentos, mas sei que essa cidade que não é mais a minha. Minha cidade são as lembranças tingidas de azul de tardes preguiçosas, de jaboticabeira e gibis, de tarefas de gente grande e mimo de criança. Mas a cada camada de lembranças relevantes cuidadosamente escolhidas sobrepõem-se novas escolhas, outros lugares, outras experiências, fundidos em uma perspectiva toda minha. Apegando-me ao que há de melhor em cada cidade, escolho ser um estrangeiro nas duas; escolhendo o que cada memória me traz de melhor, abro minha mente para o mundo.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Lembrando Dom Gambini

Era meu primeiro emprego remunerado e 'na área'. Eu e o Carlos tínhamos funções que iam de vender anúncios a escrever matérias, mas era uma revista, oras! O Carlos, que falava inglês, era o repórter oficial e eu, com minha produção gráfica de ESPM, comecei a trabalhar no projeto gráfico (contar laudas, fazer leiaute, moderníssimo!). Gerenciando esses dois grandes futuros profissionais do setor estava Raul Gambini, especialista na indústria gráfica e dono dos dedos mais rápidos que já vi operando uma IBM elétrica. Durante nossos almoços no boteco da esquina (que eu insistia em chamar de 'padaria'), ele apontava para as toalhas de papel, os móbiles anunciando drops, biscoitos ou cerveja, e mostrava que praticamente tudo o que víamos era impresso, obra da indústria gráfica, e falava de quadricromia, registro, pantone, couché, blanquetas, todo um mundo que não desconfiava existir, criando mais um apaixonado pela área -- se não tanto pela gráfica, pela editorial. Aprendi com esse meu primeiro chefe a ser gentil com todo mundo, sem deixar de dizer o que precisa ser dito; a ter amor pelo trabalho, e a buscar sempre o máximo de qualidade em tudo. Mas a maior lição, que ele ensinou como brincadeira, tenho sempre em mente ao escrever e ao pensar qualquer produto de educação: sempre pense em seu leitor/ouvinte/espectador/aprendiz. Para o 'foca' sentado à sua frente, dizia: "você tem que escrever para que qualquer burro entenda..." E, com um sorriso maroto, emendava: "Entendeu?"

segunda-feira, 1 de março de 2010

Pôr do sol

Viagens a trabalho são acidentes de percurso. Embora necessárias, significam acúmulo de trabalho, horas de espera em aeroportos, taxis, hotéis. Tendo que estar em Ribeirão Preto na terça pela manhã, preferi ir de carro, apesar da chuva constante, porque assim podia visitar meu irmão. Ia pela estrada distraído, pensando nos compromissos do dia seguinte, quando de repente o sol, diretamente em frente, me ofuscou! Continuei olhando para a pista, com os colhos semicerrados focados nas faixas e nos pneus do carro à minha frente, até que a estrada fez uma curva à direita. Dei uma olhada rancorosa para o sol poente, mas ele me respondeu com uma pintura que parecia feita a quatro mãos por Monet e Van Gogh! As nuvens de chuva até então cinzentas agora se esgarçavam em pinceladas azuis, esverdeadas e em todos os matizes de laranja e vermelho, explodindo em ouro derretido ao redor do astro que até há puco me incomodava. Eu o agradeci por chamar minha atenção e aproveitei a próxima meia hora de minha viagem com um sorriso de puro prazer estético.