terça-feira, 27 de julho de 2010

'Fíumi di chorá'

Era assim que uma locadora perto de casa anunciava seus dramas, ao passo que as comédias eram 'Fíumi dirri'. Claro que isso foi há muitos anos, quando locadoras eram lugares que se prestavam a alguma criatividade.

O fato é que para mim comédias sempre renderam poucas risadas e os dramas típicos, poucas lágrimas. Mas claro, as comédias querem tirar risos de palavrões e vulgaridades, que deixam hilários adolescentes e reprimidos em geral, e os dramas apelam às emoções mais superficiais ou mais fáceis de extrair. Não reclamo. Só o cinéfilo mais empedernido pode passar incólume vendo pela primeira vez A vida é bela, de Benigni, por exemplo. A emoção é calculada, mas está aí a arte do cineasta: os botões certos foram apertados, a catarse é feita.

Mas há filmes que só cada um de nós sabe por que nos afeta. A arte do autor é responsável por uma parte da mágica (e não por acaso Orson Welles posava de prestidigitador), mas a outra parte está em cada um de nós, é a arte lançada ao mundo para encontrar seu público.

Minha mulher vive mexendo comigo porque choro em filmes, e por isso há filmes que evito assistir com ela. Entre eles, os quatro primeiros do ranking são:
4. Mulan. É isso mesmo, o filme da Disney. Criativo, boas músicas, pouco mais que isso, mas duas cenas me matam: quando o pai descobre que Mulan foi à guerra no lugar dele e cai na chuva, impotente, e quando ela volta lhe trazendo honrarias que ele descarta para abraçar a filha que imaginava perdida.
3. O céu mandou alguém. Um legítimo John Ford, estrelado por John Wayne, em que um trio de ladrões (os três padrinhos do título original) sofre o inferno no deserto para salvar um bebê recém-nascido.
2. A felicidade não se compra. A fábula já não tão moderna de Frank Capra sobre George Bailey, o cara legal que se acha um fracassado. Não bastasse ele não ouvir do mesmo ouvido que eu (mas por um motivo mais heróico), George é o sujeito que fica feliz por ter sua família de volta, mesmo que tenha de ir para a cadeia.
1. A cor púrpura. Sempre que começo a assisti-lo me irrito com os excessos de Spielberg, o crescendo de violinos logo no começo, as escolhas de imagens puramente estéticas, a sequência ininterrupta de desgraças, mas com 15 minutos de filme é impossível não entrar no mundo que ele traduziu do livro de Alice Walker. Você pode perdoar os cortes na história e os gimmicks quando ele lhe dá a volta da Sophie à vida quando Ms. Celie anuncia que vai embora, o arrepio em todos os pelos do corpo quando Shug Avery pára de cantar um blues no Harpo's e irrompe na igreja de seu pai cantando um spiritual. OK, o homem não economizou, todas as músicas são do Quincy Jones, mas a mágica é do Steven.
Os seus 'fíumis di chorá' podem ser outros, com outros temas, mas os meus são esses. Não nego, as relações são óbvias, a família que tantas vezes deixamos de lado por escolhas mais 'urgentes' ou 'práticas', mas que realmente falam ao que somos em nossa essência. Família para curtir, para enjoar, para sentir falta.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Histórias da Vó Anna

'Descalço' que era, não entendia metade das histórias, que tinham sabor de molecagem. Nascida aqui mas espanhola de tudo, Vó Anna não era de medir palavras. Sempre fará parte do meu imaginário a história do "Largo maio". Era como uma narrativa de Pedro Malasartes, uma arrevesada jornada do herói. Nem vou tentar contar como ela, mas depois de 30 anos a versão em minha cabeça ficou mais ou menos assim:

Em uma pequena fazenda na Espanha, o marido tem de viajar para fazer negócios. Sabendo que iria ficar fora muito tempo e que maio seria um longo [largo, em espanhol] mês de seca, armazena em um quarto os mantimentos que seriam necessários para atravessá-lo. "Guarde bem esses mantimentos", disse à esposa, "são para o largo maio". Ela ficou sem entender quem era esse tal de Largo Maio e por que precisava de tanta coisa, mas se despediu do marido e continuou cuidando da vida. Passado algum tempo, surgiu um homem na fazenda pedindo comida. isso não era comum, então ela perguntou: "Você que é o Largo Maio"? O homem estranhou, mas preferiu perguntar por que. "É que meu marido mandou guardar toda aquela comida", disse ela, indicando o cômodo abarrotado, "para o Largo Maio".
O viajante, que não ia desprezar um golpe de sorte, respondeu que claro que era, e carregou tudo com ele.
Lá pelo meio de maio o Marido voltou e encontrou a mulher meio morta de fome. Quando soube o que aconteceu, gritou de raiva: "Não é possível alguém ser tão burro!"
Pegou suas coisas e disse "Vou me embora daqui, só volto se encontrar alguém mais burro que você!"
Ele sai, mas ela quer ir com ele. Mais calmo, ele se compadece. "Pode vir, mas traz a porta", querendo dizer que ela devia fechar a porta da casa. Já havia caminhado um bom quarto de hora quando olhou para trás e viu que a mulher vinha carregando a porta nas costas.

Esse é o começo de uma infinidade de aventuras, nas quais foram encontrando estupidez em cima de estupidez. A hora de dormir sempre chegava antes do fim da história, mas acho que no final ele voltaria para casa com a mulher.

domingo, 25 de julho de 2010

Amanda's day II


Pais de primeira viagem sempre fazem isso. No primeiro aniversário dos filhos fazem a maior festa, se cansam, e o filho mal registra. Quando o pimpolho é mais velho e vê as fotos, reclama que nunca mais fizeram uma festa daquelas. Pena que não guardaram toda aquela energia para mais tarde...
Lembro-me do primeiro aniversário da Amanda. Mais uma vez passando as férias longe de casa, dessa vez em São Paulo. Lembro-me de meu irmão estendendo uma lona nos fundos, os dedos de engenheiro sangrando da atividade inaudita, e de minha cunhada esmerando-se em milhares de doces enfeitados, tudo feito à mão. Que bonitinhos os dois, tenros vinte e poucos anos, já casadinhos, com cachorro e bebê.

Valeu a pena. A Amanda pode não se lembrar, mas tão fofinha com seu sorriso de olhos semicerrados e seu jeitinho de olhar pendendo a cabeça para o lado, herdado do pai, já era a alma da festa.

Amanda's day

As manhãs de meio de julho eram frias, Vó Anna chamava cedo, para eu aproveitar o dia, e dava para ver a geada. Café da manhã com leite gordo das vacas do seu Alcides, era combustível até a hora do almoço. Correndo pela estrada, atirando minhas flechas para o ar com meu arco/estilingue e correndo para buscá-las, logo esquentava. Mas quando o sol baixava para o lado do tanque, era hora do banho. No sítio não tinha energia elétrica, e encarar o chuveiro frio depois que a noite caía era difícil. Banho tomado, sentava na varanda até a abuelita acender o lampeão a gás. Às vezes ela também se sentava na varanda para tomar a fresca e cantava sua malaguenha triste. Entendia o suficiente de espanhol para saber que falava do filho que foi morto e chorava. "Não gosta que a vó canta, Roger?" "Gosto, vó, gosto sim", e continuava a chorar. Tinha 12 anos recém completos e passava as férias da minha vida, longe de casa, perto da minha história.
Logo a Vó chamava para comer, e ao redor do lampião contava suas histórias, sempre engraçadas, as partes picantes eu não entendia, mas absorvia o máximo que podia.
Um dia bem cedo ouvi movimento na estrada. Sabia que no fim de semana vinham me buscar, mas me admirei que já tivessem chegado. Corri para a porteira e encontrei minha irmã. Ela só disse: "A Amanda nasceu". "Ela é uma gracinha!"

domingo, 18 de julho de 2010

Saudades bailaoras

A luz que mal bastava para o letreiro do teatro concedia reflexos para tirar da escuridão o estacionamento de terra e cascalho. A porta de aço baixada, parcos carros estacionados. Cheguei cedo para poder falar com as meninas, mas não tão cedo assim! "Será que é aqui mesmo?" A dúvida se desvanece quando alguém grita meu nome e corre em minha direção. É nossa Manuela, a alegria encarnada! Pulamos de alegria, não é brincadeira! Mari, Ximena, Rê, que alegria rever minhas coleguinhas! E minha querida mestra Denise, também esperando na garoa com suas pupilas e seu grande Vitor, meu mestre de cajon. Quem liga para a chuva e o frio, a arte é maior que o atraso do sujeito que não morreu no caminho de morte morrida, mas quase morre de morte matada na chegada.
Arte sofrida essa, mas arte viva. Em seus vestidos de baile, minhas amigas se transformam na alma flamenca e deixam transidas até as criancinhas que até então zanzavam distraídas pela plateia, emocionando com a intensidade de seu olhar e a força de seus taconeos.
"A arte é uma amante ciumenta", e vingativa quando abandonada. A cada dia de descaso ela se distancia mais de você e, se você quiser voltar para ela, terá de se arrastar, se humilhar, se doar de corpo e alma. Ela é orgulhosa... mas agradecida. Um mero lampejo de seus favores faz com que tudo valha a pena.

sábado, 10 de julho de 2010

De volta ao chet



Meu amigo Chet é para mim o grande mistério do Jazz. Como cabia tanta doçura em um homem tão cabeçudo, destrutivo, destruído. Acho que isso é viver as paixões a cada momento. Você perde, mas a arte ganha. Nós também.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Tem coisas que só o Chico faz por ti

"Mesmo que você feche os ouvidos
E as janelas do vestido
Minha musa vai cair em tentação
Mesmo porque estou falando grego
Com sua imaginação
Mesmo que você fuja de mim
Por labirintos e alçapões
Saiba que os poetas como os cegos
Podem ver na escuridão
E eis que, menos sábios do que antes
Os seus lábios ofegantes
Hão de se entregar assim:
Me leve até o fim
Me leve até o fim"

Choro Bandido, Chico Buarque

domingo, 4 de julho de 2010

Alamedas

Na minha memória abri espaço
para uma caixa de papelão verde
para registrar e aconchegar
as lembranças de hoje e de amanhã.

Tangenciando as árvores, seu texto
conduziu meus passos quase a esmo,
pairando sobre nuvens de fumaça
como debutante em apresentação.

Alternativa, a realidade hoje se esmera
tecendo liberdades e confissões,
enquanto o dia arde e se recria
em beijos de amizade e de ternura.

Sorrindo sozinho, encho os pulmões
e sorvo a doçura de seu segredo,
embriagado de orgulho e receio.

sábado, 3 de julho de 2010

Um rio profundo

Desenho em um papel uma linha, dela verte poesia.
Como nascente voluntariosa, ela me arranca o lápis da mão e se espalha, irrigando meus desertos e me assustando com suas contradições.
Resisto, mas não convenço.