quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

O Zen e a arte de sobreviver no trânsito

O problema do conforto é nos deixar mal acostumados, dependentes dele, mas ainda assim parece que nunca estamos satisfeitos... Quando eu andava de ônibus todos os dias, tinha de acordar mais cedo e os dias de muito calor ou de chuva eram bem desconfortáveis, mas conseguia ler um livro por semana e ainda conseguia tirar um cochilo para descansar do trabalho antes de ir para a faculdade. Quando comecei a andar de carro, logo percebi algumas vantagens, como poder fazer mais de uma reunião ao longo do dia e ainda conseguir visitar amigos, mas logo começou a tensão com o trânsito... Todos os dias me desgastava com isso até que um autor me deu a dica: "o trânsito é ótimo", disse um dia, para interlocutores estarrecidos, "pois quando saio da agência estou normalmente estressado e irritado. Se eu chegasse em casa imediatamente, com certeza iria me irritar com alguma coisa, brigar com os filhos ou discutir com a mulher. Mas com o trânsito tenho no mínimo uma hora para ouvir meus discos e relaxar, e quando estou em casa posso aproveitar a família." Claro que não acreditei nele na hora, mas depois fiz o que ele sugeriu e minha vida melhorou muito! É fácil a gente reclamar do que está vivendo, e às vezes é difícil encontrar alguma coisa de bom em uma situação (com tantas tempestates que enfrentamos diariamente), mas sempre é bom lembrar daquele conto zen em que uma pessoa se pendura em um precipício, para fugir de um tigre e, prestes a cair, vê um morango. Ele come o morango e murmura: "que delícia".

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Leituras de infância

Filtrados pelas lentes da nostalgia, os fatos do passado muitas vezes se distorcem até formar uma realidade alternativa. O mesmo acontece com as memórias do que lemos, ouvimos ou assistimos. Não raro nos decepcionamos ao rever um filme de que tanto gostávamos, uma música que repetíamos sem parar ou um livro que nos absorveu irremediavelmente. Em outros casos, apreciamos com uma nova profundidade a mesma obra, aumentando ainda mais nossa admiração. Mas há casos em que somos incapazes de analisar racionalmente, pelas associações com o passado e, porque não dizer, por amor. Se alguém me perguntar se Rick Wakeman era um bom compositor, não saberei dizer, pois não quero aplicar a ele meus conhecimentos musicais; meu amor por sua música ficou tão associado a momentos de minha infância que ele não pode ser questionado nem por mim mesmo. Outra obra que surte esse efeito em mim são os livros de Edgar Rice Burroughs, especialmente os de Tarzan. Comecei a lê-los aos sete anos, e antes dos 12 já havia relido meus favoritos pelo menos cinco vezes. Como ficção popular, os livros de Burroughs sempre estiveram acima da média, nas nunca almejaram ser mais que isso. A maioria dos personagens coadjuvantes é unidimensional, e a lógica dos acontecimentos nem sempre parece natural, ficando por vezes visíveis os fios do autor. Mas esses clássicos juvenis exsudam um vigor narrativo e uma criatividade que superam o kitsch de alguns de seus parágrafos. Mesclando o esforço para conferir realismo a sua descrição da selva e de seus habitantes a concepções fantasiosas sobre a inteligência dos animais, Burroughs cria um universo fantástico que não deve nada aos dos atuais bruxos e vampiros, tão em voga. Sendo o autor fruto de sua época, alguns preconceitos se filtram em seus comentários, mas uma crítica constante à arrogância das classes dominantes e personagens fortes de todas as raças e credos evidencia sua preocupação democrática subjacente. Seus personagens demonstram uma honra cavalheiresca por vezes antiquada, mas na selva, onde a vida não vale mais que uma refeição, a fina camada de verniz dá lugar à lei do mais forte. Em meio à diversão das inúmeras reviravoltas e surpresas, um senso de ética e responsabilidade é estabelecido, mas não como norma, e sim como a escolha de quem tem consciência de seu poder, mas escolhe ser humilde e gentil. Não é pouca coisa...

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Fun Home

A autobiografia é com frequência um subgênero literário de (semi)celebridades em busca de autopromoção. No meio dos quadrinhos, no entanto, está se tornando um gênero dos mais sérios e artisticamente avançados. Harvey Pekar e Marji Satrapi são dois exemplos que chegaram ao (relativamente) grande público por meio do cinema, com American Splendor e Persépolis, mas muitos outros quadrinistas têm usado o meio com uma profundidade e honestidade incomuns em outros meios. Fun Home, de Alison Brechdel, é um dos melhores livros que já li. Acontece de ter sido escrito em quadrinhos, e ela sabe como usar o meio. Sem uma gota de kitsch, ela mescla habilmente seu texto ácido a imagens expressivas e econômicas; sangrando sua história e espanando seus demônios, Alison revela com humor e pathos seu relacionamento com o pai e nos expõe a miríade de sentimentos desconexos e frequentemente contraditórios que ora os conectam e ora os afastam. Fun Home é o romance que muitos romances gostariam de ser, o filme que muitos filmes gostariam de ser, mas acontece de ser uma história em quadrinhos. E que história!

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Corra, homo sapiens, corra!

Gosto de ler as colunas do Drauzio Varella principalmente por seu equilíbrio na defesa de uma manutenção saudável de nosso organismo. Ele é um bom mestre, no sentido de que sabe contar as histórias certas para garantir que seus argumentos sejam lembrados. Para nos lembrar da importância dos exercícios físicos, conta como os primeiros homo sapiens precisava correr por horas e horas até encontrar algum alimento, para então se empanturrar e sentar para dormir (de modo a preservar o alimento em forma de gordura), para então voltar a correr. O que ele raramente menciona é a sensação de bem-estar que músculos exercitados nos dão. Não é só o bem-estar que as endorfinas promovem depois de 20 minutos de exercícios, mas a sensação de sentir seu corpo respondendo com energia aos menores estímulos. Depois de forçar sem exagero os músculos, podemos nos sentir momentaneamente cansados, mas no dia seguinte nos fica uma sensação de poder, de vitalidade, que nos ajuda até psicologicamente a lidar com os problemas do dia e da noite. Gostaria de me lembrar mais vezes disso...

Pippi e Kalle

Stieg Larson não se cansa de brincar com os mais famosos personagens infantis escandinavos em sua série de romances policiais, dando a Mike "Kalle" Blomkvist uma personalidade de menino detetive (porque inocente e às vezes ingênuo, mas decidido) e superpoderes comparáveis aos de Pippi meia-Longa à fisicamente frágil Salander. Estou espaçando a leitura dos três romances não só para curtir por mais tempo uma série definitivamente encerrada com a morte prematura do autor, mas também porque são livros exigentes. Não me lembro de ter lido um livro tão lento e ao mesmo tempo tão difícil de largar. O tempo de Larson é muito próprio; neles as coisas demoram uma eternidade para acontecer e, quando acontecem, é tudo repentino, como o soltar da flecha na arqueria zen. É essa nítida ameaça de tempestade durante uma longa, interminável bonança, que torna o segundo livro tão angustiante e instigante. Isso e os personagens mais bem definidos da literatura policial! Agora quero ler mais uns três livros antes de iniciar o último da série, mas vou ficar pensando no que terá acontecido com a Sally!!

Porque é para ser boa

Uma das minhas comédias favoritas é um filme em que o Rock Hudson é hipocondríaco e se convence (e a seu melhor amigo, Tony Randall) de que vai morrer, e começa a encarar o mundo de outra maneira, valorizando as pequenas coisas, como a casca de uma árvore. O pobre Tony, emocionado, fica contemplando a árvore, o céu, o chão... Mas a gente precisa achar que vai morrer para valorizar o que está à nossa volta? Não é melhor olhar hoje para o céu azul, que mesmo emoldurado por prédios continua tão lindo como na praia? Se ilhados na chuva, não podemos aproveitar para sentir a força da água, que tanto nos emociona em uma cachoeira? Não se trata de usar lentes cor-de-rosa, mas é triste que em uma cidade estranha admiremos coisas às vezes parecidíssimas com o que temos em casa, quando aqui não prestamos atenção! Resolvi escrever este blog para chamar a atenção para as coisas à nossa volta que esquecemos de olhar, e para coisas que chamaram minha atenção e que também poderiam lhe interessar.