O Daniel San tinha analista? E o Rocky Balboa? O Luke Skywalker? E o Harry Potter, deita-se no divã de algum bruxo psicólogo? Ou você acha que eles não precisam disso porque são pessoas de ação? Isso nos leva a uma outra obsessão do cinema americano; a jornada do herói (divulgada de maneira tão didática por Joseph Campbell e empregada a posteriori por George Lucas). O herói não tem analista porque tem mestre. Senhor Miyagi, o treinador, Yoda, Dumbledore... todos desempenham a mesma função. E qual seria essa função? A de dar uma direção às vidas dos pobrezinhos. Todos esses heróis começam suas jornadas como pessoas atormentadas, pois não se encaixam no ambiente mesquinho onde foram criados, essa 'impertinência' os torna rebeldes ou deslocados.
Na aldeia, onde a vida de todos segue o mesmo rumo e não há perturbação da ordem, os jovens destrambelhados são orientados pelo feiticeiro, pelo pajé, pelo cura, pelo ministro. Essas figuras paternas, mais ou menos assustadoras, assumiam seu alter-ego de superego e aspergiam paz de espírito mostrando que a vida é assim mesmo, porque os espíritos/os deuses/Deus assim designaram. O certo e o errado era claro e não havia exemplos diferentes. O desvio era ruim e pronto, punido com a morte, com a humilhação ou com umas boas palmadas. Era fácil conformar-se e ser feliz com sua vidinha, pois não havia nada melhor à vista, não havia por que se rebelar. Os poucos mais brilhantes iriam se refugiar nas poucas funções artísticas ou de liderança disponíveis e se destacariam dentro de padrões estabelecidos.
Nosso herói deslocado é aquele que busca algo além da experiência de seus pares, que descobriu ou intuiu que há algo além da satisfação frugal de sua mesa cotidiana. Mas a realização de seus desejos/pulsões/missões depende de se livrarem de sua casca velha, para poderem expandir seu universo e alcançar uma compreensão melhor de seu mundo e dos mundos que o cercam. Sabem, no entanto, que ao irromper sua casca protetora vão se ofertar, tenros e frágeis, às críticas dos antigos pares, dilacerando-se por antecipação. Quando conseguem vislumbrar o caminho a sua frente, enchem-se de coragem, enfrentam as intempéries e se fortalecem em suas novas dimensões e perspectiva. Sem o mestre para guiá-los, no entanto, vão se encolher, escusos, em suas antigas carapaças.
Os normais neuróticos da vida moderna tentam encontrar a abençoada organização da aldeia em um mundo sem regras claras; onde milhões de devotos de várias religiões diferentes se proclamam os únicos que estão certos, atestando assim que todos estão errados; onde os caminhos são tantos e tão potencialmente aceitáveis que surge a necessidade de criar regras para garantir a segurança. Guetos autoimpostos dão a seus prisioneiros a sensação de pertinência que lhes falta, limitando artificialmente seu universo em um micromicrocosmo em que podem se sentir 'contentes' em sua mediocridade. Nessas condições, já não deveria haver necessidade de mestre, pois os caminhos estão abertos, mas a programação social e familiar nos impede de aceitar a liberdade, ou, aceitando, de entender o limite da falta de limite. Faltando-nos a capacidade bovina de nos conformar com a primeira forma que nos é oferecida, também nos falta a habilidade taurina de cavar nossa própria arena, levantando poeira e lutando segundo nossas próprias regras.
Nossos pobres analistas, em seus múltiplos disfarces, vão nos resgatar do beco, de cima do muro, da zona morta de quem não consegue ficar nem ir. Ouvindo freudianamente, fazendo cortes lacanescos ou fechando o círculo, contando histórias como um avô à beira do fogo, lançam fachos de luz para possíveis realidades que podemos escolher como nossas e em que nossas manias façam sentido. Enquanto não escolhemos alguma dessas janelas e não nos decidimos a saltar, são necessários. Mas sempre há alguns que começam a entender que o local onde preferem viver está pronto e mobiliado dentro de si mesmos, qualquer que seja o ambiente externo, e que podem conviver com qualquer natureza e falta dela porque seu universo é individual mas todo-inclusivo. E nossos pobres analistas acabam ficando de lado, dobrados e guardados no armário de brinquedos como um cobertorzinho de pelúcia azul.
Nenhum comentário:
Postar um comentário